O avião do voo interno no qual pernoitamos até Udaipur aterra por volta da hora marcada mas a chegada à cidade acontece, mais uma vez, por via de Tuk-Tuk que nos descarrega no átrio exterior do hotel Jaiwana Haveli juntamente com as malas. O sucesso desta logística satisfaz-me porque apesar de só trazer 10 Kg para esta viagem, carregá-los às costas constitui um fardo que sinto desajustado com o valor da carga. Os quartos ainda não estão prontos mas com esta boa organização, ainda chegamos a tempo do pequeno almoço que é servido no terraço do quarto andar. A paisagem do rooftop é belíssima e a fruta cortada e o crepe caem-me no goto com o mesmo prazer dos melhores banquetes.

O hotel fica no centro a poucos passos do Gangaur Ghat. Na descida até lá encontram-se muitas lojas bem organizadas com peças, jóias, gravuras. Deito os olhos num quadro com um kingfisher e lembro-me do Príncipe. Diz-me o lojista que este pássaro também existe na Índia. Uns dias mais tarde irei ter uma má experiência relacionada com esta informação mas, antes disso, acabarei por comprar uma gravura com o guarda-rios depois noutra cidade. Voltando à praça vejo um músico sentado num tapete e um homem a alimentar pombos, distribuindo água em pequenas tigelas espalhadas no chão. Há um mural colorido onde um sol parece personificar o rosto de um homem indiano hindu de bigode farto com pontas elevadas, ainda um barco pousado no lago e mulheres que tocam instrumentos e dançam.








Depois de visitarmos mais um templo, continuamos na região de Silawatwari rumo ao City Palace mas não sem antes verificar a escadaria faustosa e um pouco abrupta do templo Jagdish. Olhando para cima, vejo dois elefantes esculpidos no cimo das escadas, lado a lado, mas só irei confirmar a beleza do edifício de mármore trabalhada no dia seguinte aquando da festividade do Holi Festival, visitando-o no seu interior depois de contornarmos o templo juntos, e da esquerda para a direita como sugerem as tradições da boa-venturança hindu.









Caminhamos até ao magnífico Palácio da Cidade. Além do símbolo OM no centro em representação do que os hindus consideram o único som primordial da criação (ou o som do universo), Ganesha é outro dos símbolos que encontro na porta que antecede o primeiro recinto do Palácio, mas volto a ver o símbolo da cruz que já me havia inquietado há alguns anos quando viajei pelo Japão, confundindo-a com a cruz nazi. Na verdade, a cruz suástica tem mais de cinco mil anos e é um elemento presente em muitos locais do mundo, porém, Hitler apropriou-se da suástica (que significa “bem-estar” em sânscrito) representando-a de cor preta, virada para a direita e a 45 graus, com os cantos voltados para cima, mas é importante voltar a olhar para este símbolo limpo das significâncias menos positivas, pois é também um dos mais relevantes símbolos e mais sagrados do hinduísmo e do budismo indiano e japonês.


Voltando ao palácio, o acervo de peças é alucinante, entre esculturas e instrumentos musicais, fotografias e pinturas dos marajás, além do detalhe da própria arquitectura de todo o edifício, dos tectos, das salas, dos murais pintados e até uma passagem divertida de quadros emoldurados em folha de espelho. Fui-me surpreendendo com o volume crescente de obras à medida que fui passando de sala para sala, e a partir de certa altura já me encontrava sozinha pois independentemente de termos entrado em grupo, as pessoas têm tempos diferentes e esses ritmos particulares, na minha opinião, devem ser respeitados. Quando entrei na área dos deuses, encontrei uma placa na primeira sala com uma citação de Mark Twain que remonta a 1897, com a qual me identifico para retratar este país e que traduzo assim:
"Esta é realmente a Índia; a terra dos sonhos e do romance, de fabulosa riqueza e de pobreza fabulosa, do esplendor e dos trapos, dos palácios e casebres, da fome e da pestilência, dos génios e dos gigantes e das lâmpadas de Aladino, dos tigres e elefantes, das cobras e da selva, o país das cem nações e das cem línguas, das mil religiões e dois milhões de deuses, berço da raça humana, berço da fala humana, mãe da História, avó da lenda, bisavó das tradições, cujas adversidades de ontem remontam às antiguidades do resto das nações - o único país sob o sol que é dotado de um interesse imperecível para pessoas educadas e para as ignorantes, sábios e tolos, ricos e pobres, escravos e livres, a única terra que todos os homens desejam ver, e tendo visto uma vez, mesmo que de só de relance, não teria um vislumbre igual por todos os espectáculos juntos do resto do mundo."






























À saída interagi com duas senhoras indianas que se encontravam sentadas no ponto que tínhamos combinado para nos reencontrarmos, junto da porta de acesso. Como olhei e lhes sorri, passaram-me uma criança para os braços. Tenho pensado sobre este gesto e de as crianças serem uma espécie de fruto de entendimento e talvez de amor entre os povos. Em Portugal isto não me acontece porque somos todos da mesma matéria, e fazemos a nossa vida muito mais desinteressadamente em relação ao que nos rodeia, mas fora das minhas fronteiras e quanto mais distante estiver de casa mais estes episódios me sucedem. O efeito das crianças talvez nos faça mais humanos. Ou mais que isso, na proximidade entre um adulto e um ser estranho que é humano e ainda pequenino, talvez se tente encontrar um ponto comum de inocência mais genuína, e até de verdade que possa emergir das profundezas daquela alma que por ser jovem ainda se encontre à flor da pele. Sendo por breves e inesperados instantes, sinto sempre reconfortante abraçar estas crianças que o mundo me vem entregando ao colo.
Depois de algumas horas de chuva percebemos que volta a ser viável o passeio de barco no lago Pichola. A vista das margens é uma perspectiva diferente, desde o nível das águas. O barco deixa-nos em Jag Mandir. Estaremos nessa plataforma no meio do lago cerca de uma hora, passeamos e tiramos fotografias. O barco irá levar-nos de regresso para um jantar vegetariano próximo do hotel.

A manhã do dia seguinte é passada no festival das cores. Depois disso, tomamos um primeiro duche para retirarmos as cores da pele, vestimos roupa lavada, fechamos as malas e na impossibilidade da passagem dos tuk-tuk até ao hotel, teremos de seguir a pé com as malas até quase abandonarmos a zona histórica. Este esforço de cerca de vinte minutos com malas e em pleno ambiente de festa fez-me perceber outra faceta dos indianos. É que ao seguirmos em fila, uns atrás dos outros, e de roupa lavada, fazendo correr as rodinhas dos tróleis ou carregando as mochilas às costas, a boiar na sensação iminente de os pós vermelhos, rosa, verde e de todas as outras cores nos caírem em cima. Agora estão a ser atirados ao ar de forma mais forte do que durante a manhã porque agora há muito mais pessoas na rua e nós somos os únicos que não participamos. Durante quase todo o caminho fomos pedindo aos holi-festivaleiros (que eram todos os transeuntes em Udaipur) para que não nos atirassem ou colocassem pós coloridos no rosto. Please don’t, fomos repetindo, escondendo a cara e franzindo o corpo como se nos quisessemos esconder. O facto de termos conseguido atravessar e de termos tido o respeito daquelas pessoas e de termos conseguido manter-nos impolutos diz muito sobre esta gente. Finalmente quando entramos nos tuk-tuks expressamos uma surpresa colectiva pois entre nós ninguém acreditara que conseguíssemos transpor a cidade mantendo-nos limpos.