Na Índia apenas 14% da população é muçulmana, 80 % é hindu. Na cultura hindu, politeísta, existem mais de 300 milhões de entidades. A fim de me identificar com uma, escolho Ganesha, filho de Shiva, um deus com corpo de homem e cabeça de elefante que representa a abundância, a fortuna, e cuida do mais importante, o intelecto e a sabedoria. Feita a escolha, ao entrar no táxi vejo um pequeno amuleto de Ganesha que viajará connosco na parte dianteira do veículo sob o retrovisor. Para meu espanto, estava prevista uma visita ao Shree Siddhivinayak Ganapati Mandir, um templo hindu dedicado ao meu Deus-cabeça-de-elefante, o que não podia ser mais perfeito. Logo à entrada do recinto deixamos as câmaras fotográficas num cacifo e somos avisados que temos de nos descalçar. Existe um caminho delimitado por proteções de ferro, que percorremos descalços sobre um tapete vermelho até junto da entrada no templo. Apesar de não nos termos separado dos telemóveis, a partir daqui não é permitido fotografar. Ao descer de uns degraus Lord Ganesha espera-nos majestoso pintado de vermelho vivo, no centro de uma moldura dourada, excepcionalmente dourada, demasiado dourada, de onde o elemento carmim sobressai. O volume de devotos é enorme. Mediante uma oferenda pintam-nos o terceiro olho na testa (Ajna, o sexto chacra). Antes de sair reparo que Ganesha só tem uma presa (dente) do lado direito, o mesmo para onde está voltada a tromba. Uns dias mais tarde, em Jodhpur, irei aprender num workshop de culinária com a anfitriã, Anita, que este Deus só tem uma presa para simbolizar a vitória sobre os obstáculos e também que, por uma questão de boa-fortuna, a tromba de Ganesha deve estar voltada para o lado esquerdo. Lembrar-me-ei desta informação na hora de comprar um souvenir. Ainda dentro do recinto, no percurso de saída, dirigimo-nos às esculturas dos ratos que nos esperam para que lhes possamos pedir três desejos ao ouvido. Confirmo se percebi bem mas a tradição é mesmo essa. E assim sucede, além de nos “indianizarmos” com uma marca vermelha entre as sobrancelhas, também me vejo vergar sob um rato de bronze coroado de flores e confessar-lhe três pedidos que retiro das algibeiras da alma. Este país e seus costumes torna-nos excêntricos, faz-nos extravasar quem somos nas nossas ações e tudo parece uma grande brincadeira. And so we go with the flow. Cheios de boa disposição, passamos pela zona de lavar os pés antes de recuperarmos o calçado. À saída do templo o número de pedintes aumenta. O gesto de levarem a mão à boca passa a ser habitual. Na falta de um idioma comum, é uma mímica que todos compreendemos como a ilustração da ideia de fome. Percebo que as crianças estão bem treinadas. Sinto alguma tristeza por ver tantas pessoas procurando subsistir por via de esmolas mas existem vários problemas colaterais relacionados com a caridade proveniente do turismo, sendo o primeiro a perpetuação desse estilo de vida.






Em contraste com esta realidade, viajamos de tuk-tuk até à área de Bandra, e atravessando um Centro Comercial onde as montras ostentam as melhores marcas de luxo, descobrimos o Conscious Culture Festival, um festival com uma série de exposições que foi desenhado para inspirar as pessoas a criar hábitos de sustentabilidade cruzando moda, alimentação, acessórios. Apanhamos outro tuk-tuk que irá ficar sem combustível a meio caminho. Os motoristas não falam bem inglês mas a substituição da motoreta acontece rapidamente. Ao entardecer, chegamos à praia em Chowpatty mesmo a tempo de um pôr-de-sol que se eternizará nas nossas memórias. Somos abordados por uma família indiana que ali se senta connosco em tertúlias de perguntas e respostas. Todos temos curiosidade de perceber as nossas diferenças culturais. É uma estrada de dois sentidos. Gosto muito destas conversas com os povos locais. Geralmente fazem muitas perguntas, e sempre que demonstram interesse em conhecer mais sobre nós e de onde vimos penso que nos cabe responder da maneira mais clara possível. Estamos de visita e é gentil esclarecermos as suas questões pois através delas percebemos também o que os inquieta e lhes interessa de forma mais honesta que como dizia Voltaire devemos “Jugez un homme par ses questions plutôt que par ses réponses” e naquelas circunstâncias ambos os grupos, um face ao outro, são uma oportunidade sociológica, pelo que neste fim de tarde, a dez passos da graça das águas, dois povos ficaram a conhecer-se melhor.


Por excesso de horas no aeroporto no último dia de viagem conseguiremos regressar a Mumbai com destino no Café Mondegar, cujo nome em persa significa “eterno”, pois quando abriu as portas em 1932 era um café Iraniano onde nos dias de hoje as pessoas se acotovelam por uma mesa. Um jantar memorável de aniversário que valeu todas as horas de trânsito, e também o episódio de eu e a Tânia termos ficado com as malas dentro do aeroporto e os Serviços de Imigração e Fronteiras não nos terem deixado voltar a entrar para utilizar o cloak room. É quando se percebe que viajar em grupo tem vantagens, pois o resto dos elementos que nos acompanhava apoiou esta situação caricata. No final do dia, disse a dois meninos que vendiam flores no trânsito que a Teresa fazia anos apontando o carro ao lado e eles correram ao táxi onde ela seguia para lhe oferecerem uma flor. Momentos como este realçam o “i” de incrível que a Índia é.






