A Frenética Mumbai (Bombaim) – Part I

A minha viagem na Índia começa e termina na megalópole de Mumbai. É o dobro da população do meu país contido naquela cidade: mais de 20 milhões de pessoas. E é nela que se confirma a imprudência do trânsito: o colorido de tuk-tuks sem regras; o ruído ubíquo das buzinas e a travessia pedonal irrefletida nas ruas. Irrefletida porque atravessar a rua em Mumbai é seguir em frente com uma mão em sinal de paragem na direcção em que os carros se aproximam e absoluta confiança de chegar ao outro lado. Mumbai foi a primeira cidade que visitei e, por isso, aquela onde encontrei a primeira vaca transeunte que corri a fotografar; máquinas ambulantes de sumo de cana-de-açúcar, e coisas mais inusitadas como bancas de passeio com notários a atender ao público ou lojas de impressão de documentos debaixo de um guarda-sol e alimentadas a gerador. Descobri que, talvez por herança britânica, a prática de críquete é o desporto mais popular entre os indianos. Mumbai foi também o lugar onde primeiro vi e questionei o que fazia um arame com pimentos, limão e carvão pendurados em plena rua e nas entradas das casas, que, aparentemente, entre hindus, se acredita trazer prosperidade. Não é novidade que a Índia é um país de crenças e tradições, repleto de gravuras de deuses e objetos de veneração, mas estes símbolos estão presentes a cada dois passos. As vendas ambulantes de tapetes, ímanes de frigorífico, colares, e um sem-número de coisas, também são frequentes fora dos mercados, porém, os mercados “oficiais” expõem os bens de forma mais organizada. O mercado de Crawford, em Fort, é o maior de Mumbai e onde se encontra um pouco de tudo. Especiarias, frutas, legumes, flores, produtos de limpeza, cosméticos, são apenas alguns exemplos. Os vendedores não parecem importar-se dos seus momentos de relaxamento fazendo a sesta a seguir ao almoço. Além do edifício ser um monumento que só por si merece uma visita, visto representar a arquitetura vitoriana, a passagem pelo seu interior nas horas mais quentes contrasta com o calor que se vive no exterior. Não esquecendo o fontanário histórico, cujos sinais de deterioração são evidentes, construído em 1874, cinco anos após ser erguido o edifício onde hoje é o mercado. Nas ruas em volta o mercado expande-se principalmente através de vendas de roupa e calçado, mas também mais fruta e legumes. Além de sumos, há pratinhos de fruta cortada pronta a comer. Nas ruas de Mumbai, e logo no primeiro dia, bebi e brindei com um coco acabado de abrir entre mãos. Também em Mumbai, tomei o primeiro chai (lê-se “tchai”) e não esquecerei o contacto inicial com os verdadeiros sabores da comida indiana fora dos restaurantes indianos internacionais. As refeições servidas em tabuleiros de metal. Talheres contra pedido. O Nan, o Dhal, o arroz e, principalmente, a delícia das sobremesas.

Conheci a estação de Chatrapati Shivaji Maharaj atravessando-a e dando atenção aos pequenos vitrais circulares por onde a luz da rua entra. Através de uma passagem inferior, mudei de rua sem pressas para vislumbrar e fotografar o belíssimo exterior da estação. Regressei ao hotel de táxi ainda a tempo de tratar dos cartões de dados para o telemóvel. Mais tarde, um cocktail no Colaba Social para fechar o dia, depois de tantas horas de viagem e de ainda não ter deitado o corpo no colchão de uma cama.

Amanheci bem cedo para seguirmos de comboio até Dadar após um simpático pequeno-almoço. Dadar é uma região de Mumbai conhecida pela lavandaria Dhobi Ghat “a céu aberto” onde os hóteis, e os hospitais colocam a sua roupa. Entramos para visitar, ciceronizados por um senhor da comunidade. Existe roupa por toda a parte. Homens carregando grandes tulhas avançam em passo apressado. Montanhas de peças em ganga parecem largadas mas tudo obedece a uma lógica bem organizada. Além desta indústria funcionar percebe-se a vida de quem ali reside. Há homens que se barbeiam e banham. Crianças que brincam, outras estudam. Não deixa de ser curioso não ter visto mulheres a trabalhar, desde a entrada com os tanques numerados até às áreas onde as roupas estão penduradas diretamente no entrançado de cordas, sem necessidade de molas. Na área de secagem são também homens os que se ocupam de passar a roupa a ferro. Pela primeira vez, vi uma secadora de tambor industrial a funcionar alimentada por gás de botija. Tudo isto em contraste com os arranha-céus ao fundo que vemos melhor de uma das entradas principais, onde bebemos um chai acabado de ferver para depois seguirmos.

Ao longo do caminho, há pedintes que nos abordam em várias circunstâncias, de todas as idades, desde crianças com talvez menos de seis anos. Há homens deitados a dormir na rua ao acaso, como se não se importassem com o totalitarismo do Sol ditando-nos para estarmos acordados nas horas do dia. As ruas estão sujas, há lixo espalhado mas também há muita gente na tarefa de varrê-lo deixando-o em montinhos, que acredito possam ser removidos mais tarde. Há barbearias ao ar livre como há sapateiros, e vi um local onde um grupo de galinhas piava a dois metros do lugar onde outras se encontram transformadas em partes para vender. Prefiro imaginar que não exista consciência entre os animais, ao contrário do que declarava Philip Low há mais de uma década. Penso que só um louco não repararia que os animais empreendem comportamentos cheios de mistério para a nossa inteligência. Há-de chegar um futuro mais justo para eles, penso. No mesmo instante passa uma mulher que vende leques de penas de pavão. Irei perceber no decorrer da viagem que se trata de um objecto frequente de venda pelas ruas. São penas originais. Pormenores acutilantes a acrescentar ao que tinha acabado de pensar. Oxalá não matem as aves para recolher as penas mas que sei eu? Não compro, não demonstro interesse pelas penas de pavão mas, apesar de não me ser indiferente, também não mudo absolutamente nada daquele cenário. As peças por lá se mantêm nesse tabuleiro vivo e sortido de pessoas que não tiveram a mesma educação que eu. Estou tão longe de Varanasi e já levei um murro no estômago, como em tantos lados onde não vi a justiça ter forma. Às vezes são tudo só palavras bonitas que só fazem sentido noutras paragens e as pessoas tentam sobreviver. O que é para mim certo é errado para elas? Não sei. O mundo é diferente conforme o ângulo de onde cada um o espreita. Isso percebi há anos. Continuo a ver pedintes e pessoas a dormir no chão. Apesar disto, vamos com cerca de um dia de Índia e as pessoas ao sorrirem de volta, mesmo quando as fotográfo, enunciam no seu rosto uma espécie de filtro de paz que me apazigua. Como se apesar do que se vê, seja essa a ordem possível e aceite. É a ordem delas que despenteia a minha. As pessoas reconhecem as regras das suas vidas, são simpáticas e condescendentes com os estrangeiros que as fitam. Da amostra do que vejo, ganho a primeira impressão de que a Índia sabe receber bem quem a visita.

O ponto de paragem seguinte é um lugar de peregrinação islâmica, a mesquita de Haji Ali, localizada numa espécie de península à qual acedemos após uma estreita estrada de 600 metros de comprimento banhada pelo mar Arábico. O Nuno avisa para que não usemos as câmaras pois estamos numa zona diferente da cidade, mais “fechada” aos ocidentais; e os muçulmanos não gostam de ser fotografados. Já trazia esta lição de outras vidas. Tirei algumas fotografias à minha responsabilidade. Ao entrar na mesquita, cobri os ombros com a écharpe e dirigi-me à ala das mulheres. Larguei os sapatos para visitar a sala de oração. Vi uma fila de mulheres curvadas sobre o tapete e uma zona de lavagem dos pés. Todas as mulheres de cabeça e rosto coberto, perceberam -com os olhos que me fitam através das aberturas de tecido – que eu não passei lá para debitar os versículos de Maomé. Eu fui de visita conhecer o que elas ali faziam e não me surpreendi. Através dos buracos do muro vi que o melhor estava lá fora: o mar arábico em renovação. Saí, contornei a mesquita pelo lado de entrada dos homens. Larguei novamente os sapatos para sentir a água viva nos pés, atrás da mesquita, após descer um pequeno ghat onde muitos indianos me pediram para tirar fotografias a seu lado. Ocorreu-me olhar em frente com a noção de que atravessando o mar, a 1580 quilómetros ficava Mascate, um dos melhores lugares que já visitei.

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