Debruçada nas margens do Ganges, amada por tantos e odiada por muitos, ergue-se Varanasi. Cidade sagrada dos hindus com mais de três milhões de habitantes. Cidade mais suja e, no entanto, a capital espiritual de mil milhões de hindus, a que purifica os espíritos e os leva a descansar através da moksha, quando as cinzas são largadas no Ganges terminando todo um ciclo de reincarnações. Assisti à cremação de corpos enrolados em lençóis brancos, entre troncos que os amparam. Apenas os intocáveis podem transportar madeira e fazem-no durante as 24 horas do dia que incluem as noites. São precisos 300 Kg de madeira para queimar um corpo, e fazer a pira em terra. E os corpos ardem e o cheiro sente-se. Centenas de pessoas assistem à tradição que leva milhares de hindus a Varanasi a carregar os seus mortos para esta cerimónia de purificação, de renovação, de busca pela pureza dos seus. Pedi e deixaram-me fotografar uma pira mas é mais à frente junto ao Ganges que se vê a verdade da práctica da cremação que confere com a conhecida cultura de Varanasi.



Varanasi, ou Benares como lhes chama o povo, tem também os rostos mais carismáticos da Índia. Os homens que se cobrem de tinta branca (normalmente com a testa em amarelo e vermelho a centro) os Sadhus, são os homens-santos do hinduísmo e do budismo que renunciaram à vida mundana. Escolhem viver na sociedade baseando-se na práctica espiritual. Etimologicamente Sadhu vem do sânscrito e significa “homem bom” e os Sadhus são renunciantes (sanyasi), pois deixam todo seus bens materiais e escolhem viver em cavernas, florestas e templos, não só da Índia como do Nepal. Sadhu é Baba em linguagem comum e portanto estas pessoas vivem em vários locais da Índia, como o eremita Aloo Baba que visitei perto de Pushkar. Mas Baba também significa pai, avô ou tio em muitos idiomas. Os Sadhu são fáceis de encontrar em Varanasi mas estes que se sentam nos ghats (e em Varanasi existem 84 ghats) insistem na cobrança do valor que estabelecem para as fotografias, demonstrando que a ganância os consome o que não está alinhado com as suas supostas escolhas espirituais de vida. Esta constatação foi uma grande surpresa.











Encontrei também uma menina-avatar de cara pintada de azul, com o mesmo desejo ardente de dinheiro. Compreendo que vivam disso mas é aflitivo sentir a urgência em serem pagos. Tirou-me a vontade de interagir e conversar com eles e até de os fotografar.


Varanasi é uma das cidades habitadas mais antigas do mundo e, portanto, carrega todo um imaginário. As pessoas tomam banho e lavam roupa no rio, afinal ali é a sua casa. Outras parecem estar de visita como nós e passeiam, com os olhos em descoberta.









À noite assistimos à cerimónia Ganga Aarti, que reuniu milhares de pessoas ao longo do Dashashwamedh Ghat, assim como no rio em redor. Um ritual de dança e fogo absolutamente avassalador em termos de energia devido à presença de tanta gente, no entanto, parece haver lugar para todos e de forma organizada e ordeira. Esta cerimónia acontece para homenagear a deusa Ganga. Os sacerdotes bramanes dançam em movimentos circulares e sempre no sentido horário, munidos de candelabros em chamas, que simbolizam a ligação entre o mundo real e o espiritual. Depositam-se velas flutuantes nas águas, com flores em jeito de oferenda à deusa Ganga, mas esta experiência já a tinha feito antes de me dirigir para esta cerimónia. A puja foi a minha oportunidade de sentir o Ganges nos pés.







À medida que nos distanciamos do rio, e das suas pequenas embarcações, Varanasi parece-se com a zona antiga de uma qualquer outra cidade indiana, com templos à porta aberta, restaurantes, locais para beber chai, frituras, vacas livres, bazares com ofertas de tudo e pessoas indianas extremamente afáveis com quem é fácil conversar. Mas as subtilezas continuam a popular de entre a aparente normalidade, por exemplo, casais recém-casados vestidos de marajás, ou mesmo homens despidos que se passeiam na rua.
















No hotel Sri Omkar Palace, muito bem localizado nas ruelas labirínticas da parte antiga, junto do Chausatti Ghat, os macacos trepam às varandas em busca de comida e invadem-nos a mesa do pequeno-almoço no terraço do último andar.
Na madrugada seguinte vamos ver o nascer do sol de barco. Às cinco da manhã já há pessoas em banhos e orações no rio, um homem sentado de espelho na mão pinta o terceiro olho, há diversas embarcações a sair além da nossa, monges em exercícios no seu ghat e pelas seis e meia uma bola vermelha tímida levanta-se no céu cinzento. O barco desliza connosco e o espectáculo continua pelas margens e pelo rio. Ao fundo, o fogo que não cessa vai dando paz aos mortos. Varanasi fervilha e está viva e as centenas de corpos que chegam diariamente renascem na crença hindu como almas libertadas das próprias cinzas. É o Ganges, tudo isto é Ganges.





