
Encontramos Baba sentado de cócaras em cima de um muro. Inconfundível devido à própria figura e sua barba branca. Começamos imediatamente a interagir com ele. A sua história pessoal é desde há mais de quarenta anos só se alimentar de batatas, beber chá verde e fumar haxixe. Embora não tenhamos insistido na parte referente aos canabinoides pois, pelo que nos contou, alguns vídeos filmados ali, foram divulgados na internet, expondo-o, e Baba agora não fuma à frente dos seus visitantes pois a reacção do mundo é criticar o seu modo de vida. Então ao entrarmos na “sua casa” que se parece com o quintal de um armazém ocorre a sensação de pensar “mas que bem se está ali em cima do muro” e aproximamo-nos imbuídos de curiosidade. Baba recebeu-nos como se nos aguardasse, pedindo-nos que não interferíssemos com os pavões que por ali andavam. Contou-nos que medita sozinho todo o dia pois está rodeado de aves e de boa energia. E que com aquela dieta o seu corpo não muda: “Body don’t change. Same, same“. Tem 79 anos mas não sabe em que dia nasceu. E não tem família, explica que a sua mãe, pai e filhos são Deus e que é junto Dele que será a sua próxima casa, na sua próxima vida. Ouvimos com respeito e nesta pausa Baba pergunta se compreendemos o que está a dizer e escusa-se:”No english. Little bit. Yeah?” A sua língua nativa é hindi mas compreendemos perfeitamente o seu inglês e percebemos daquele diálogo simples que Baba é um eremita por amor à natureza.



Entreguei-lhe um saco com batatas que agradeceu. Tiramos fotografias com ele, fizemos meditações com ele. Visitamos o recinto verificando a simplicidade dos seus abrigos. Toquei no sino antes de entrar no seu pequeno templo, como se estivesse a passar debaixo de um torii e sentisse essa vibração de, por alguns minutos, trocar o mundano pelo espiritual.






Em conversa depois com uma amiga, fui conduzida a reflectir sobre o Baba e todos os outros homens que vivem na Índia num estado meio-marginal. São pessoas aceites na sociedade indiana embora sejam (intencionalmente) indigentes. Não têm ocupação profissional nos termos mais elementares que comportam um salário e o cumprimento de determinado ofício. Não lhes é pedido que entreguem o seu contributo à sociedade, que façam descontos fiscais e esta situação além de ser respeitada não lhes retira prestígio. Pelo contrário, estes gurus da vida zen na Índia são visitados por pessoas de todo o mundo. Baba será um homem comum? Um homem que estabelece um compromisso honroso com a sua solidão. Podemos empurrá-lo para o lado da pobreza ou da fortuna? Podemos vê-lo como um homem pobre, e até acrescentar algo mais, considerá-lo um homem pobre e sem utilidade para a sociedade mas a verdade é que a sociedade é que não tem utilidade nenhuma para ele. E acredito que as pessoas o procurem devido ao cariz inspiracional que Baba transmite ao ser totalmente livre. Ao ser diferente. E a Índia permite isso. Apesar de haver muitas pessoas a dormir na rua, há margem para estes seres (e são muitos) terem ali um lugar. Dentro de poucos dias, irei testemunhar em Varanasi, a mesma situação com os homens santos, que podem ser santos ou não, alguns podem ser personagens a tentar subsistir mas dão excelentes motivos fotográficos. A diferença é que, em Varanasi, são “modelos fotográficos de rua” que só se deixam fotografar em troca de um mínimo de 200 rupias. O Baba recebeu um saco de batatas de um grupo de 10 pessoas, como se cada um de nós representasse um tubérculo, porque para ele o dinheiro não parece ter qualquer importância. Não tendo nada, tem tudo o que precisa para passar um dia atrás do outro, ocupado nos seus pensamentos e nas suas meditações.

Na (minha) sociedade ocidental na Europa e mesmo nos Estados Unidos, em geral estas pessoas não têm lugar. Os sem-abrigo estão marginalizados, são cada vez mais, e as políticas pouco promovem a sua inclusão na sociedade. É como ir a África ver tudo o que lá está à vista e perder o romantismo utópico de o mundo poder vir a tornar-se um lugar bom. Em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa havia definido como desígnio nacional erradicar o drama dos sem-abrigo até este ano de 2023 e veja-se o estado em que nos encontramos. Os voluntários que desenvolvem trabalho prático no terreno junto dos sem-abrigo sabem e testemunham que uma grande parte destas pessoas escolhe continuar na rua em vez de aceitar a ajuda do estado para se instalar em albergues. Eu penso que os albergues sociais devem ter regras de horas de entrada, horas de saída, horários de refeições, de mudas de roupa de cama, e não é a mesma liberdade que a rua dá, mas sobretudo por esse apoio físico e até de conforto não lhes trazer qualquer bem-estar espiritual. A diferença não está nas medidas políticas, está é na mente das pessoas. A pessoa-cidadã está longe de ser livre no mundo ocidental. Mas se há tantas pessoas, diria a maioria, a enaltecerem os benefícios do trabalho, por que motivo tão poucas defendem o seu oposto?
Agostinho da Silva, escritor, professor e filósofo português, nascido há 117 anos, licenciado com 20 valores na Faculdade de Letras do Porto e doutorado na Sorbonne de Paris era, antes de mais, um pensador que nunca quis ter um bilhete de identidade ou um cartão de contribuinte, e nunca pagou impostos, pois que nunca soubera para onde iria esse dinheiro, advogava que o homem “nasce para criar, para ser o poeta à solta” e que a cultura “começa por todas as pessoas comerem o que devem comer”.
Vivam os poetas soltos.
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