Os Sons do Sahara (Réveillon)

Foram muitas horas a subir o Alto Atlas. Antes e depois da cordilheira, Marraquexe: el Jardin Majorelle, a Medina, a Praça Jemaa el-Fna, jantares entre danças tradicionais, e a lição de que o verdadeiro óleo de Aragão não deixa gordura nos cabelos. Atravessei as Gargantas de Todgha em Tinghir. Visitei os labirintos do Bahia Palace. Percorri a colina de Aït-Ben-Haddou, palco de tantos filmes. Dormi e acordei em Ourazazate. Desenharam-me o nome na mão em El Aouina onde me trajei de lenço e djellaba azul e segurei bandeiras. Apanhei areia no deserto. Apanhei frio no deserto. Apanhei uma constipação forte no deserto. Mas cumpri o desejo de visitar o Sahara. E quando o novo ano começou vi fogo de artificio inundar um céu sem estrelas.

Talvez por o deserto ser um horizonte de marcas de cor laranja, servem-nos sempre tangerinas à sobremesa depois da Tagine. As crianças vendem desenhos do que são capazes de desenhar, outras estendem a mão por qualquer coisa que lhes pousemos nas palmas ou que nos consigam puxar com os dedos. Esta África continental fica perto de casa, porém, à distância soma-se-lhe o calor diurno, as poeiras, as paisagens vastas de montanhas de silêncio, o artesanato de pedras pintadas por dentro, e os tapetes que mãos berberes teceram para que se possa agora regatear. O rosto do Sol encontra-se provavelmente a espreitar detrás de uma duna mais acesa. As sombras dos animais seguem no seu trajeto lento de pisar areias. Há um grupo de dromedários que nos espera. Está combinada uma volta de uma hora. Ou uma hora e meia. Faz parte do programa. Vejo um homem puxar uma corda presa aos dentes de um animal para que se levante. Dá-lhe com um cajado nas pernas. Os camelos-árabes estão presos uns aos outros pois não existem pontos de ancoragem no deserto. A areia não tem consistência para manter algo fixo. Esta particularidade podia ser mais um elogio à liberdade, como o símbolo do “H” curvo que pulula nas bandeiras, nos tapetes e nas paredes em Marrocos, porém, aprendi nesta viagem que os homens aqui prendem uma das patas do dromedário mantendo-a dobrada para que não possa caminhar, não possa fugir. O animal combalido emite um ruído que ouço como um choro, um grito. Passa a ser este o som que o define. Esse grunhido – algo entre o que emite um cavalo e um boi – passa a ser o meu som de ligação ao deserto. Não sou capaz de seguir no dorso do animal, embora faça parte do programa. Vou para o acampamento de 4 x 4. Sigo de jipe com as malas em cima. O motorista é o pai do Sayd. É ele quem nos vai mostrar as tendas no acampamento, pois seremos os primeiros a chegar. Os carros que se seguirão irão carregar pessoas no lugar das malas. Mas a viagem não é longa, ronda os vinte minutos até que tudo em redor das tendas seja deserto. Um jipe ultrapassa as dunas ao longe. Olho o jipe sem conseguir distinguir bem se tem tempo ou se tem pressa. Os pneus passam mas, por baixo, a areia lavada pelo vento continua limpa. Aqui apenas as pegadas dos sapatos, das botas dos homens, nos lembram que existimos. Abro um frasquinho e entorno-lhe areia vazia, sem marcas de ninguém. Penso que poucos locais têm o sentido absoluto do Sahara. Ali é possível parar para pensar naquilo que se está a sentir. Daqui a mil anos tudo parecerá igual: a mesma cor, mesma textura, semelhante serenidade prolongada e ameaçadora, apesar do número de passos que se irão afundar na mesma areia, e esse som que se faz ao caminhar é como se fosse o arfar do próprio deserto. O seu suspiro, embora a quietude. No deserto não há música, mas os grãos de areia dançam. Talvez o vento murmure frequências que nos sejam inacessíveis. Não há flores, não há perfumes, não há oásis, contudo aquele fascínio do nada. Imperativo. Um mistério onde mergulhamos melhor à luz diurna: um nada laranja que renasce inúmeras vezes assemelhando-se à eternidade. À noite, assinalamos o novo ano com a contagem decrescente e com o barulho da festa. Ouvem-se foguetes. Fogo de artifício. E todos os olhos seguem as luzes que voam até ao céu. Então o deserto desaparece.

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