Depois de ter dado boleia à Silvana para a cidade quando voltava do trabalho, fiquei curiosa com a região onde ela vive. O nome é poético: Ponta do Sol. Também existe na Madeira mas quem se terá lembrado desta bonita ideia de o Sol ter pontas? Sugere-me que o Sol possa afinal não ser uma esfera de fogo concêntrica e perfeitinha. Ocorre-me chegar-lhe os dedos e beliscá-lo nessa ponta, sem temer queimar-me. Ter conhecimento da existência desse lugar escondido nas paisagens do Príncipe faz-me querer visitá-lo. Primeiro passei em Oquê Daniel, que se localiza ao lado. (Já expliquei aqui que Oquê na língua local da ilha significa montanha.) Nesta região do Monte Daniel existem plantações que pertencem à empresa. Cultiva-se baunilha, café, cacau. Durante uma reunião na semana passada, o Baltazar, responsável pela secção de Agricultura, explicou-me que a baunilha é uma orquídea trepadora, fecundada de forma manual, ou seja, artificialmente, pois não existem polinizadores naturais para o fazer. Mas não há nada como ver no campo e, por isso, decidi ir procurá-la no fim-de-semana. Fiz também uma pesquisa e descobri que foi um escravo que, aos 12 anos, descobriu que a baunilha podia ser polinizada à mão. Isto desencadeou a possibilidade de ser comercializada em maior quantidade. A essência da baunilha retira-se das vagens. Confirmei com as minhas próprias mãos que são umas cápsulas alongadas, essas “placentas” da baunilha, e não sabia. Vi outras plantas como a Ylang–Ylang que tem um aroma muito intenso. O Balú diz que é utilizada na indústria da perfumaria o que não me espanta. Vi também borboletas a esvoaçar nas pequenas folhas apesar de não existirem quase flores nas plantações do Príncipe. Os santomenses dizem que “o mar não gosta de flor“, o que parece ser verdade já que é o mar que abunda a toda a volta.

Junto da área concessionada da empresa existe um lugar onde a paisagem é estrondosa. Quando se fala na paisagem de Oquê Daniel, é dali que se a vê. A propriedade é privada. Recentemente, foram construídas duas cabanas de madeira para turismo. Os acessos não são nada bons: é obrigatório usar a tracção às quatro rodas mas compensa galgar o terreno para lá chegar. O Balú deu-me as indicações para vislumbrar o pequeno paraíso que me estava a cerca de quinze minutos do escritório da Roça Sundy e ainda não tinha visitado. A panorâmica contém a Baía das Agulhas e o pico Mesa. A paisagem ameaça com aqueles verdes fortes e compactos. A paisagem tem o mesmo poder de intimidação das coisas que consideramos mais belas e inconquistáveis. Tudo incita sinais divinos naquela natureza viva sem moldura, sem tinta. Tudo faz fixar os olhos naquela direcção. Tudo é bonito, suspirado e inexpugnável. Depois de apreciar aquela maravilha, partimos.

Na vontade de interagir com as comunidades da Ponta do Sol, fomos até à roça mas praticamente não encontramos ninguém; vi a zona da lavandaria bem arranjadinha, outros pontos de água, um campo de futebol e um armazém de secagem que parecia deixado meio ao abandono.

Mas na rua junto às casas, paramos para cumprimentar as crianças. Os miúdos sempre alegres mesmo sob o rumor das chuvas. Conheci o Josemar e o Denis que traziam umas almofadas prateadas. O Josemar de boné ao lado conquistou-me ao primeiro sorriso. O Denis mais pequenote andava atrás dele a imitá-lo. Alguém disse a estes meninos do Príncipe para fazerem poses para as fotografias. Ao verem telemóveis em punho, parecem treinados para fazer desenhos com os dedos e posarem com estilo. Mas não era preciso… A Marlene de t-shirt rosa forte onde se lê Paris, sem imaginar que cidade Paris é, sem saber nada do mundo lá fora, a não ser que eu (e outros da “minha mesma pele”) vimos de lá. Ofereci-lhes gomas por não ter mais nada para lhes dar. Apenas um doce a cada criança porque não devemos dar-lhes guloseimas; além de não ser saudável, os cuidados médicos dentários na ilha são praticamente inexistentes. No final, perguntaram se voltava “amanhã”. Respondi que voltaria mas não “amanhã”. A almofada do Denis furou enquanto estive com eles. Injusto o mundo nas suas mãos pequeninas, tão frágil quanto aquelas almofadas. Aqueles instantes em que uma almofada deixara de ser almofada estão fora do nome do local, não tiveram nada de poético, são tristes. Como é que se explica a uma criança tão pequena que a almofada deixara de poder insuflar-se e transformar-se num assento fofinho? Não se aprende a dar estas explicações aos meninos. Há que entender e aceitar que muitas coisas só se podem aprender com o tempo. No hiato entre a manhã e a tarde, se lhe encontrar a outra ponta, hei-de puxar as duas devagarinho até rasgar o sol. Um dia há-de crescer outra luz que não esta. A noite há-de trazer um dia diferente, mais justo para estes meninos.