Até à Cascata Monte Alegre foi mais um trilho escorregadio, sempre a descer, lamacento, típico para sujar os ténis, as meias, os pés, rir, e recear cair. Ao mesmo tempo, mais uma aventura para triunfar. Desta vez, além de todas as plantas e árvores habituais do parque natural, vi também bambus erguidos ao alto, homens na lavoura e militares de catana na mão abrindo caminhos. As minhas calças ficaram cheias de pegue-pegue, a planta que parece um mini-autocolante verde que fica colada à roupa quando roçamos nela. Com a aproximação do mês de Dezembro, os dias estão a ficar mais quentes. Transpira-se muito pois a humidade nunca inferior a 70% sente-se a cada passo, a cada respiração. Durante este fim-de-semana, a electricidade esteve racionada ao mínimo e, em todo o Príncipe, o período de abastecimento resumiu-se a 10 em 48 horas. Mais especificamente entre as 17 e as 22 horas. Estivemos, feitas as contas, forçados a ficar 38 horas “desligados” durante o período de descanso semanal. Portanto, quanto a mim, nestas circunstâncias, o melhor é tomar um duche de água fria e sair de casa, visitar um pouco mais da ilha e ir almoçar algures. Assim, este Sábado de manhãzinha encontrei-me com o Balú no MiraRio, e às 8:30 já estávamos a chegar à Roça Monte Alegre. Depois de estacionar o carro, apercebi-me de um pequeno bar mas que não servia café e logo ali ao lado iniciava-se o trilho pelo que começamos de imediato a descida a pé. Seguindo directamente até à área onde se avista a cascata contamos quase uma hora e meia. Pese embora eu tivesse na ideia que fosse possível aceder mais de perto à queda das águas, o espectáculo corresponde mais ou menos ao que estava à espera: além da água a cair recicladamente, entre a floresta e a sua ressonância, nada mais faz despontar o olhar. Sento-me num tronco e imediatamente dou comigo a pensar que agora é preciso regressar. Os trilhos têm esta componente de missão que no instante em que se cumpre logo se sente uma voz ao ouvido a mandar voltar para trás. Como se depois de se chegar ao destino não pudesse acontecer absolutamente mais nada que não seja um aborrecido regresso, num percurso invertido sem novidade. Mas o acto de caminhar, olhar o chão, olhar em frente, olhar o efeito da luz do sol a brilhar entre as folhas, são o meu escape, a minha cabana na floresta, e todos estes olhares que assomam enquanto faço o caminho são independentes do trajecto. Depois de chegar ao destino, de o conhecer, deixo de o imaginar e passo a ter tempo para os pormenores que se perderam na descida. Portanto, apesar da subida prometer ser mais rápida, decidi parar na área dos bambus. Sempre gostei desta planta de tronco cónico comprido, absolutamente exemplar. Não sei o que estava ali a fazer aquele feixe de bambus, por ser tão dissemelhante do resto das árvores. A mim, chamou-me à atenção porque me atrai o que, a meu olhos, é belo. Então, toquei no bambu para relembrar com as mãos a sua falta de rugosidade. Às vezes, tacteio a natureza também para lhe encontrar palavras. A natureza é magistralmente extraordinária, e há-de haver um mundo próprio das árvores que nos é inacessível. Um mundo interligado pelas raízes, onde provavelmente se transmitam coisas, muita bondade por certo, resiliência, saberes antigos. Talvez até o efeito dos nossos dedos quando lhe tocamos possa sentir-se a quilómetros de distância. As árvores têm o dom da permanência, exprimem-se pela inactividade e ancestralidade, mas a linguagem é que determina a nossa realidade. Aquilo que não tem interpretação em alfabeto é como se não existisse. As palavras são os elos, os vínculos que enlaçam as coisas que vemos e as outras que sentimos. Quem não está disponível para as palavras, perde grande parte do fulgor do mundo. O poeta argentino Roberto Juarroz escreveu:
O que retira a árvore do olhar?
O que retira o olhar da árvore?
O que fica de um no outro?
É justamente sobre isto que penso e escrevo hoje. Do prazer do verso e do vasto chamamento ao lugar dos nadas. Talvez apenas o poeta esteja desperto para buscar sentido nos silêncios, e haja nele o ofício de os comunicar aos outros. O que o meu olhar retira da árvore é esse vínculo. A seiva desviada e transcrita, posta em palavras. E por isso não me aborreço. Depois de reverter o sentido de volta à roça, fiquei por lá a interagir com a comunidade. Levei doces às crianças, fiz novos amigos, bebi Rosema, e quando dei por mim, a falta de electricidade não fez falta nenhuma. O Monte era Alegre e eu estava cheia de luz também.