Chegamos à Praia Grande pouco passava das sete da tarde. A noite estava já tão escurecida que ninguém se lembraria de imaginar uma manhã a nascer no dia seguinte. No escuro, ouviam-se os bichos da noite, os da floresta. E é quando estão abertas todas as gavetas que guardam os mistérios do mundo. É quando se sente a presença de toda aquela vida que se mantém escondida durante o dia. Através dos seus ruídos, a natureza tresvariava a sua força. Caminhávamos com pequenas lanternas. A minha primeira surpresa foram os caranguejos que saíam dos buracos aos milhares, parecendo confusos sem saberem para onde ir, apesar de estarem por todos os lados. Além de nós, apenas as árvores silenciosas habituadas a tudo aquilo. O carro estacionamo-lo junto à tábua de boas vindas, onde se lê “Welcome to Praia Grande”. Trocamos o feixe de luz para infra-vermelho antes de descermos pelos pneus que servem de degraus de acesso à praia. Pouco depois pisávamos a areia. Foi então que reparei nas estrelas ao som do oceano a chegar à costa. Por cima da Praia Grande, a quantidade de estrelas que o céu apresenta é impressionante. E vemos as árvores como silhuetas. São estes momentos que merecem um tripé e uma boa câmara com algum tempo de exposição.
Vamos caminhando ao longo da praia, enquanto o mar vai chegando perto e afastando-se para trás. Diria, meio às cegas, que noventa graus depois da linha do mar haveria de haver uns trinta metros de areal entre água e floresta. Talvez mais. Ainda estou a habituar os olhos à noite. Tento não pisar caranguejos, mas a maioria são tão grandes que nos escalam o calçado. Em vez de caminhar parece que avanço aos saltinhos. A Filipa avisou-me que os caranguejos só nos sentem devido à vibração do chão. Os animais não detectam as luzes infravermelhas. O ideal é ir deslizando os pés na areia e os cracks (como lhes chamam aqui) afastam-se.
A certa altura encontramos aquilo que fiquei a saber tratar-se de um trilho: uma larga faixa na areia com marcas simétricas de ambos os lados. Pelas marcas, é possível identificar se as barbatanas subiam em direcção à floresta ou, se pelo contrário, desciam de volta para o mar. Seguimos as marcas percebendo que alguma tartaruga teria subido ali para desovar mas logo uns metros à frente encontravam-se as marcas invertidas, denunciando que já descera. Quando assim é, os guardas traçam uma linha paralela ao mar a cortar o trilho para não se voltar a perder tempo na identificação.
Este rastro que as tartarugas deixam à sua passagem, surge na perpendicular de quem o vê como uma mancha negra comprida, parecem amarras largadas na praia.
Continuamos a caminhar. Pouco tempo depois vemos outro trilho a indicar subida. Portanto, ainda não tinham passado trinta minutos desde que entraramos na praia quando distinguimos vestígios ascendentes do que confirmamos ser uma Tartaruga Verde deitada num buraco com um pouco mais do que a sua espessura, trabalhando com as barbatanas traseiras a preparação de um ninho. Por um segundo, sou a pessoa mais afortunada do universo. O coração lembra-me que está vivo. E depois de nesse breve instante ter ficado sem fôlego completamente dentro daquele momento, vi um animal maior do que supunha, naquela missão de remexer a areia com alguma urgência. Dei comigo a pensar que ninguém lhe ensinara a fazer aquilo. E isto é a definição de instinto, de sobrevivência. Apesar de ali exposta, fora de água, parecer tão vulnerável, tão indefesa, haveria de ter cerca de um metro de carapaça. Fomos sentar-nos reservando uma distância de uns dez metros, a aguardar que terminasse o buraco na areia sem que notasse a nossa presença. Voltamos a comentar sobre a beleza do céu estrelado. Cheguei a pensar que, comparando aquele céu ao céu do Norte, o outro mascarado de verde dançante é muito mais artificioso. É que, naquela noite, por cima da Praia Grande não havia uma estrela fora do sítio.
A Filipa foi confirmar que se iniciara a desova e chamou-me. Os ovinhos caíam uns após os outros num espectáculo emocionante. O animal cheirava a mar. Posto em classes, a tartaruga é na verdade um réptil que cheira a peixe e põe os seus ovos como se estivesse a parir muitos filhos consecutivamente. Chegam a ser 150 “bolas de golf” com vida lá dentro. Percebia-se que se contorcia através dos movimentos das barbatanas superiores e do pescoço. A cabeça totalmente fora da carapaça esticava e retraía-se. Os olhos humedecidos fechavam e abriam e o mais belo de tudo era ouvir-se-lhe a respiração intensamente, resultado do esforço durante o processo. Encontramos cascas de ovos de tartarugas que terão nascido entretanto, se calhar da mesma fêmea, ou de outra, nunca saberemos. Esta tartaruga verde, com mais de 25 anos, com a sua carapaça perfeitinha, deveria estar exausta. Deixamo-la. Voltei a refletir que ninguém lhe ensinara a fazer aquilo. É uma coisa maior que o instinto, é a natureza, a perfeição da natureza. Aquele animal tinha cavado um buraco para depositar os filhos que ainda irão nascer no próximo ano, num ciclo perfeitamente contrário ao nosso que cavamos buracos na terra para depositar os nossos mortos. Parece irrisório mas posto em palavras torna-se uma constatação tremenda. Falta dizer que “apenas 1 em cada 1000 filhotes sobreviverá até à fase adulta”.
Fomos ainda visitar o Museu Kaxí Tetuga. O museu da biodiversidade marinha da Ilha, com ilustrações nas paredes sobre o ciclo de vida das Tartarugas. Uma barraquinha com três divisões, uma das quais é uma pequena sala para exposição de resíduos retirados do mar, desde embalagens plásticas, chinelos de praia, latas de refrigerantes, objectos estes que se encontram pendurados. O objectivo é que nos sintamos desconfortáveis e que nos apercebamos que os animais marinhos enfrentam este cenário diariamente. Outra curiosidade na sala ao lado são os fetos encontrados mortos que se exibem em soluções alcoólicas de preservação dentro de frasquinhos e, na parede em frente, pinturas feitas à escala das três espécies de tartarugas presentes na Região Autónoma do Príncipe. A espécie Ambulância chega a atingir dois metros de comprimento e pensa-se que exista há mais de 100 milhões de anos. 100 milhões de anos, repito. A natureza vai tão além de nós humanos e da nossa inteligência…
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