Adeus, Príncipe

Para dizer “Adeus” é necessário algum afastamento e isso tem que ver com “tempo”. A despedida, agora, comporta as reflexões do que se viveu ao longo de um ano. Primeiro, sobre o lugar e tudo o que ele nos deu, tudo o que nos tirou: a adaptação ao país subtraindo as culturas, o desnível de conforto, ausência de gasóleo, falta de electricidade, a intolerância à picada dos mosquitos, escassez de variedade de comida. Depois acerca da experiência em si – o saldo entre o que se foi lá fazer e o que se fez realmente – e, no fim, o mais importante, as pessoas que a própria vivência trouxe. As que logo após chegarmos passam a fazer parte do nosso dia-a-dia, incluindo aquelas que, não importa quantos calendários passem, por lá continuarão porque pertenciam ou pertencem já ao Príncipe. Às vezes, também se tornam muito importantes as outras, que estão de passagem e se nos apresentam por acaso, na praia, no restaurante, no hotel: turistas, voluntários, e até colegas de trabalho que abandonam a ilha antes de nós. Porém, sobram muitas mais com quem trocamos esgares mas poucas ou nenhumas palavras, e nunca um aperto de mão nem um abraço final; apenas os olhos se cruzam sem grande emoção. Tenho verificado nos espaços do mundo, sob qualquer que seja o retalho de céu, que existe uma parte de gente que nos toca e outra não. Para as pessoas por quem temos empatia acontece sempre vontade de lhes entregar algo de nós, vontade que inicialmente se converte em palavras. Para aqueles por quem não desenvolvemos empatia, a esses não lhes devemos nada. A empatia é como uma luz bonita com muita intensidade que nos traz brilho à retina. A empatia também tem que ver com “tempo”. As crianças no Príncipe podem ter muito pouco mas há nelas a capacidade se acenderem dessa maneira, criando laços em segundos, fazendo da terra um lugar suave de luz a brilhar intensamente. Não se pode conhecer o Príncipe sem constatar que a infância e a mocidade invadem a ilha, em larga percentagem e por causa disso ficarão as crianças a sobrar-nos na memória.

Crianças da Roça Belo Monte, Praia Banana, 17 Janeiro 2023

Para dizer “Adeus” é preciso esquecer o arrebatamento das paisagens que parecem nascer a cada dia connosco. A areia que o mar lavará para sempre e a verdura omnipresente nas margens. Nelas pessoas raras e uma quietude da ordem do infinito. As contínuas tempestades tropicais estentóreas e a inesperada falta de sol. A visão pura de uma terra pura e profundamente completa. Sei como é voltar-me para trás, olhar para a direita, para a esquerda e concluir que a terra não tem artifícios. É como um retrato do princípio do mundo. Há lugares no mesmo nível de alucinação das coisas sonhadas e apenas nesse grau. Por causa desta ilha, sei como é experimentar o paraíso e toda a força abrupta desse abismo, espírito de nascimento. Sentido de Terra Mãe junto à água quente, como se ali fosse mesmo o ventre do mundo.

Para dizer “Adeus” há que pensar no propósito, na entrega ao trabalho, nos esforços em atender as comunidades locais, nas pequenas conquistas de mediação, e no final celebrar a transformação que se levou, pois cada gesto, cada ação, cada decisão ficarão nas palavras com que escolhemos escrever a nossa vida, mas sem pretensões de grandes façanhas pois a enormidade dos feitos dos portugueses do passado desonra a nossa História ainda no presente. De nada adianta mascarar o que se passou. As ruínas do colonialismo são metas dos trilhos que servem para reverter verbas e nenhum português é chamado para justificar o injustificável dos seus antecessores. A população local não evoca os fantasmas lusos mas vinga-se com a sua alegria, a sua vida fervilhante, e no Príncipe há vida em tudo para encher capítulos. A natureza ilustra o poder da terra. Sei por força dos passos caminhados que no interior da ilha há uma circunferência de montanhas atentas, árvores opulentas que respiram.

Para dizer “Adeus” é preciso lembrar a disposição do dia em que cheguei, plena de expectativas prazerosas, e no dia em que saí da ilha, igualmente satisfeita, com sentido de compromisso que se cumpriu. Um ano numa região insular tão pequenina é um mergulho fundo de alma. Um ano chega para testar quem somos e é suficiente para não desejar ali continuar na próxima volta da Terra em torno do Sol. Parece sempre mais fácil ficar, permanecer na desaceleração africana das horas, a casa está sempre arrumada quando tudo o que se tem cabe num par de malas, porém, a vontade de levantar a âncora não desaparece. Um ano chega para desejar outro mundo quando se pode dar voz de comando à intuição e esse é o fito mais honesto. Então é preciso seguir para polinizar novas ideias, imergir em novos contextos, polir o emocionário, mas sempre, e outra vez, sem nenhuma certeza de rumo certo. O caminho descobre-se durante a viagem por que a viagem é o caminho. A minha grande viagem. E aceito com gratidão entrar no avião inter-ilhas, brincar de co-piloto, mesmo sabendo que sobrevoava aquele mar provavelmente pela última vez.

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