Há dias a minha mãe publicou esta fotografia no Facebook que lhe roubei do mural. Gosto imenso desta imagem mas a minha mãe utilizou-a como capa, porém, sem palavras. Pareceu-me que a desperdiçava, deixando-a a sós, sem legenda, sem título. Pelo menos a meus olhos, na imagem, sobrepõem-se três planos: o quadro, a minha mãe e a minha gata. E isto comporta imenso que ficou por dizer.
Começando pelo plano de fundo, o díptico e suas cores: o quadro de eleição de que todos gostamos, que a minha mãe comprou num ímpeto que a caracteriza (que foi também um acto altruísta, o que a caracteriza ainda mais). Esse quadro que acompanha a família há mais de 20 anos e que ocupa quase a totalidade de uma parede da sala é uma obra intemporal porque a minha mãe é uma mulher de bom gosto. É que, por destino, eu tenho a sorte de os meus pais não terem uma predileção por formas de arte mais literais como seria se houvesse na mesma parede, por exemplo, o Menino da Lágrima, ou uma reprodução da Última Ceia como tinham (e têm) a decorar-lhes a sala os pais de tantas famílias da minha geração. Não que a minha mãe não aprecie o Renascimento ou a bella italia, muito pelo contrário, o problema é a temática, a não originalidade, e a discutível falta de gosto. E claro o toque de religião que nunca a assistiu nem nos foi passado. De resto, nem rendas, bordados de ponto de cruz, tapetes de arraiolos, nada disso. Nunca tive uma mãe prendada para tricotar nem costurar. E nem para nos fazer bolos. Em nossa casa somente refeições saudáveis e quer gostássemos quer não gostássemos saíamos da mesa quando terminássemos o que tinha sido servido. E, portanto, foi sempre tudo muito pouco convencional. Uma casa sem fritadeiras nem batedeiras, imagine-se. Tenho antes o privilégio de ser filha de um casal que me soube estimular curiosidade para as Artes em geral, estudá-las, compreendê-las, pais que optaram por me espicaçar para viajar, instruir para leituras profundas e desprezo pelas fáceis, me ensinaram na Primária a sentir a poesia como se a deve sentir além de ler, pais que me incitaram a que me fizesse competente e nunca me permitir desistir. Não falo desistir de um objectivo porque os planos mudam mas nunca desistir do que acredito e quero. O quadro do pintor que tem o mesmo nome do meu pai simboliza de certa forma tudo isto: o belo, as cores, alguma tranquilidade, sedução, poesia. Em suma, numa palavra, acho que o que ali está desenhado em tintas é o Amor.
Depois, à frente do quadro, está a minha própria mãe que, na minha vida ocupa muito mais espaço do que uma parede, na verdade, uma parte dela está em todos os edificados da minha vida inteira e com um destaque imenso embora não lhe fale muito sobre o assunto porque nunca fomos de nos dizer estas coisas. A minha mãe que, de óculos nesta imagem, me faz lembrar o Andy Warhol – porque eu tenho a sorte de ter uma mãe um pouco Warhol -, ainda hoje muito à frente do seu tempo e com uma identidade só dela. A minha mãe é da geração das mulheres que começaram a fumar em carneirada e por isso nunca fumou, nunca foi vulgar, penso que nunca terá encostado um cigarro nos lábios; nunca pretendeu ser igual às outras. E que me desculpem as outras até porque eu própria sou do grupo das outras. Nunca me vou esquecer, quando, a minha mãe descobriu, nos meus tempos de faculdade, que eu me tinha iniciado na prática do tabaco e me disse:
– Mafalda tu estiveste a fumar. Preferia que tivesses chegado a casa grávida porque isso eu entenderia.
E isto diz muito sobre quem é a minha mãe.
Por fim, no plano ainda mais dianteiro, temos a minha gata cinzenta de orelhas dobradas como dita a sua raça. Aos meus olhos, as três “coisas” da fotografia enquadram-se como três actos, cada qual com a sua história particular. Na verdade, são quatro, pois embora não se veja eu sei que ali está também o meu pai. Ocorre-me dizer: o grande Homem por trás da grande Mulher. Aposto que tenha sido o fotógrafo de serviço e parece que estou a ouvir a minha mãe dizer:
– António Fernando, tira outra por favor porque não fiquei bem nesta.
E o meu pai, e a sua paciência infinita para aquela que é (sempre foi) a mulher de sua vida, a repetir a trigésima fotografia e a mostrar-lha para ouvir:
– Essa está melhor mas tira outra depressa porque a Jú não gosta de estar ao colo.
A Jú, a minha gata, agora deles, pois a deixei em Lisboa em 2018 quando emigrei para o Médio Oriente. Da mesma forma que uma década antes lhes tinha deixado os pássaros no Porto quando migrei para o sul de Portugal, e já na altura não me convinha levar animais. De facto, nunca me deu jeito levar outras responsabilidades que não as de trabalho. Curioso é que estes animais foram sempre ofertas que alguém com amor me deu. Eu nunca decidi ter animais, nunca comprei nem fui buscar nenhum animal à rua, porque os animais e as plantas não têm podido contar muito comigo. Apesar de eu ter uma sensibilidade acrescida para animais e plantas de boa taurina que sou, exatamente como ela: a minha mãe.
A minha mãe nunca nos permitiu referir-mo-nos a ela como “ela“. Sempre nos educou como sendo a nossa mãe. E quando dizíamos “mamã“, a minha mãe também não apreciava. Durante muito tempo combateu o diminutivo mas ainda hoje, para nós (filhas) continua a ser tratada por “mamã”. Nunca conseguimos chegar a esse dia em que os nossos pais deixam de ser papás e passam ao estado adulto. Nós, sim, passamos ao estado adulto cedo mas eles não. Penso que, tanto eu como a Joana, nunca conseguiremos tratá-los de outra forma. Mas estava a dizer que vou deixando para trás estes seres que estão vivos enquanto creio que vou seguindo para a frente nas múltiplas escolhas da minha vida, mas com as pessoas é diferente, encho-me de explicações. Eu que me julgo boa com palavras, escolho as mais bonitas, mais limpas, luzidias, e quase as embrulho numa caixinha de cristal para as entregar e as assistir a serem bem recebidas pelas pessoas de quem mais gosto. Na esperança de que me esperem claro, esquecendo-me por vezes que a vida em Portugal também não pára no momento em que decido partir.
– É só mais um projecto (digo). Daqui a pouco estou aqui. Três meses passam num instante.
E três meses depois regresso, ou então decido, em vez disso, apanhar um avião para ir atrás do mundo novo, das aventuras, de ir ver terras que ainda não vi, outras culturas, ou mais um pedaço do imenso mundo das artes que alguém com génio criou. A minha vida, eu sei que é a vida que a minha mãe desejou para si e não pode ter. Eu vivo a vida que quero e que também está longe de ser convencional exatamente porque nasci destes pais. É que a mão da minha mãe está em tudo. Obrigada mãe por me teres trazido à vida e me teres explicado qual era a melhor maneira de a viver. Não é por acaso que aparece a tua mão à frente da gata, em primeiríssimo plano.