Ode ao Sol (Casa, Setúbal)

É cedo para serpentear a Arrábida mas estou a ficar sem tempo. A estrada irrompe o matagal da serra. Vou de encontro à rampa que é a melhor janela para o Creiro, para o Portinho, e para todo o horizonte de milagres azul-mar e azul-céu, com a terra a esticar os seus dedos lá embaixo. O sol nasceu e subiu. É agora uma bola entre planetas que têm outros apanágios pois o Universo é um carrossel colossal de possibilidades e inspiração. Copérnico demonstrou há 450 anos que, estejamos mais ou menos perto, rodamos todos em volta do sol, o que o faz ser o centro de todo este sistema. É esta a sua importância. No sol há sempre fogo, e a chama não morre: o sol é um fogo que não acaba.

Sol-herói em trabalho contínuo no buliço da fornalha. Sol, que se jorra no brilho prata das águas da Anicha. Nele é sempre verão, boné e sandálias, mas a esta distância já trago um casaco pela manhã. Uma malha azul a combinar com os outros elementos de mais longe em azul-Miró, azul-turco, ou apenas azul, onde a pele olivácea da montanha se coordena bem. Olho em redor e parece-me ver muita beleza subestimada. Baudelaire explicou que para se digerir a felicidade natural, é preciso primeiro ter-se a capacidade de a engolir. A Natureza é plena, é mãe e é inteiramente verdadeira. Não admira que no xintoísmo haja 8 milhões de deuses em sua honra.

Sol-timoneiro, guia de querenças. Entretanto já não faz frio. Atiro o casaco para trás. Faz-me bem sentir o calor na pele. É que a vida vem toda dali. A minha, a tua, a da montanha, a vida toda vem dali. E há muita coisa a acontecer que eu não vejo: as aranhas a tecer suas mandalas; as abelhas a seguir o cheiro das compotas; a pequena raposa sadina escondida; a discussão das nuvens quanto às horas e quantidades de chuva que haverão de verter sobre nós; tanta vida, e, apesar de tudo, ninguém assiste às minúsculas derrocadas de terra que são a montanha a respirar, ninguém vê daqui o movimento das águas a baloiçar os barquinhos, nem os anjos à espreita do Paraíso.

Mundo majestoso este que parece tão tranquilo. No entanto, Itália virou à direita, o furacão Ian passou por Cuba apagando-lhe a luz e sacode agora a Flórida, deu-se mais um tiroteio numa escola na Califórnia, mais abaixo, Bolsonaro faz campanha montado num touro, e contam-se já quase três meses de invasão russa sobre a Ucrânia sem anúncio de paz. Aqui da coluna da montanha nada se ouve, nem o sol a crepitar do sal do mar que se lhe deita, apenas o vento tocando a floresta. O vento despenteia-me mas não me desalinha. É hora de arrumar a mala e despedir-me de casa levando estes odores e todos estes silêncios que são energia vital para os próximos meses.

%d bloggers gostam disto: