Retratos de infância

A infância é o período desde que se nasce até à adolescência, portanto, dos 0 aos 12, mas no Príncipe, a idade é um pouco indistinta. Vai-se percebendo pelo tamanho dos chinelos de enfiar no dedo, com a cor já gasta. Há tragédias maiores no mundo, até por que continuo a ver a alegria das crianças da Ilha, mas a sorte não deixa de ser um grande acaso geográfico, e, ao olhar para estas crianças, há uma certa inevitabilidade em pensar nos dias por vir, onde elas já não lhes pertencem. Haverá outras, certamente, pois haverá sempre muitas crianças ali.

Em “swahili”, Kadogo significa criança, mas no Congo Kadogo também significa soldado. E isto diz muito sobre África. Portanto, quando dizemos que as crianças são o futuro, temos de lhes olhar o passado e as suas circunstâncias: de onde vêm, onde nasceram, os seus recursos, o meio. Afinal, há um flaco errado se houver outro que seja o certo, com menos necessidades e mais direitos. E, nesse sentido, deveríamos interessar-nos pelo futuro das crianças como um todo. Nestes tempos que vivemos com uma guerra próxima a abalar a segurança no ocidente, ninguém sabe como, nem quando, esse conflito irá terminar. Porém, regemo-nos pelo seu fim, ansiando o regresso à paz e à normalidade. Entretanto, na Ilha, as crianças debaixo dos telhados verdes da floresta não sabem nada sobre a guerra, nem tão-pouco aprenderam a sonhar com o futuro, muitas não compreendem sequer o conceito. A simples ideia de se fazer um desejo. Se lhes perguntamos, não sabem responder. Ficam vagas e continuam imersas no presente. Como se o presente fosse todo o mar em redor da ilha e o aceitassem para sempre. O futuro seria o resto do mundo e esse, além São Tomé, de onde o barco vem, está demasiado longe para ser entendido. Por agora, as crianças têm poucos quereres mas, por exemplo, dizem:“Gosto de ir para a escola, as professoras são boas”. Uma vez, pediram-me uma boneca quando ia a caminho da praia e eu não tinha. Tive pena de não ter trazido meia-dúzia de bonecas na mala em vez de mais uns jeans e umas t-shirts. São até raras estas crianças donas de quase-nada que pedem algo mais. Depois, riem. E é certo que vão crescendo. A idade vai-se percebendo pelo tamanho das hawaianas. (Cuidado com essa letra trocada que te pode deixar alergias nos pés.) Mas nas estradas a descer para as margens vêem-se, muitas vezes, os mais novos descalços, ao lado das árvores de fruta-pão. Noutras alturas, traja-se a meninice de acessórios arrojados e telemóveis. Como no outro dia, na Praça, o menino do terço ao pescoço que nunca tinha visto um drone. E outros exemplos que estão lá todos os dias. Na casa da Lorenza, a menina descalça a assistir absorta à pequena tela do telemóvel que tem na mão, até eu a chamar e me acenar de volta.

A Luizinha, filha da Géni e do Sr. José, que também gosta de se alienar no telefone (devem ser desenhos animados), vem, outras vezes (qual RP) receber-nos no Armazém, com todo o encanto possível nesse contexto dinamizador onde se tecem laços de confiança ao longo dos dias. Às vezes, empurra o irmão no triciclo, que ainda não chega aos pedais. Estes meninos do restaurante e os filhos dos meus colegas têm bom calçado. Na praia Burra, as crianças nasceram mais pobres: conduzem bicicletas de pau. Perto do porto, dois meninos de bicicleta seguram uma corda entre eles. E junto à Roça Sundy outra menina descalça vai puxando o seu brinquedo-carrinho: uma garrafa de plástico perfurada por dois paus e quatro rolos de fita por rodinhas. De repente, passa um pequeno Ronaldo, e eu penso “a que futuro terão direito estes meninos de pé ao léu“?

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