A maneira como fomos feitos. Cinco dedos no pé direito. Cinco no esquerdo. Até aqui tudo perfeito. Olhando as mãos, a mesma conclusão. Perfeitas. Talvez fruto da arte de pensar, tudo nos pareça obedecer a um sentido próprio, admirável, excelso. Em teoria, em espírito, e em tudo o que se vive dentro da cabeça. Às vezes, queremos exceder-nos; e perdemo-nos em desejos não-finalizados, algo que não iremos cumprir; como a ideia de ir ao espaço ver se a bola-Terra tem a cor azul que se diz. Outras alturas há, em que basta retirar a cortiça a uma garrafa, entre amigos, e nada mais faz falta. É no vinho, que reside a juventude, porque ficamos dentro desse tempo, conservando os olhos dentro dos olhos dos outros onde nenhuma desventura acontece. A Vanessa foi embora há mais de 3 semanas. Tenho a data presente porque foi o dia em que caí. Quarta-feira à noite, noite escura, noite ideal para sucumbir num buraco à entrada do restaurante. De qualquer maneira, foi bom não ter ido embora pois pude assistir à corrente oculta que vários anos na ilha criam entre as pessoas. Assistir à forma como dois seres, nascidos a mais de 6600 quilómetros de distância, se abraçaram e se demoraram nos olhos um do outro. É o tipo de acontecimento que não se pode fingir. É melhor do que um filme. Foi muito melhor que qualquer filme, vê-las. E a amizade é isto. Não sei o que disseram mas vi uma flor passar de mãos como quem diz: “tu és boa para mim, vou ter saudades”, numa fugaz eternidade que amacia o coração.


Depois do abraço veio a canção. A Bella cantou ao som das violas. O Spencer dizia que ela “é uma Diva que está ali”, cantando descalça, chamando outras pessoas para dançar. Claro que me esqueci da queda e de desinfectar as feridas. Tapei as pernas com papel higiénico para me proteger do pêlo dos cães que, passando debaixo da mesa, se foram juntando à festa. Claro que não ia perder aquela oportunidade de edificar o meu mundo de passagem no Príncipe tão real, tão genuíno, de comunhão entre gente que se gosta. Fomos batendo com as mãos na mesa o ritmo da música. As violas e as vozes trouxeram-nos a Cesária. A morna da “santa praça”, lembrando a experiência migratória cabo-verdiana nesta República, mas hoje dedicada à Vanessa, que cantamos em conjunto. Afinal todos nós viemos de longe.
Quem mostra’ bo
Ess caminho longe?
Quem mostra’ bo
Ess caminho longe?
Ess caminho
Pa são Tomé
Sodade sodade
Sodade
Dess nha terra são Nicolau
Todos viemos de longe e um destes dias dei conta que já conhecia todos os caminhos da ilha. Curioso, tivera esse desiderato há 3 meses e agora parece que a ilha ficou mais pequenina. Porém, nunca deixará de haver coisas novas. Não me canso de reparar. Por exemplo, durante a gravana o oceano não é apenas feito de chuva, há outros mistérios dissolvidos na areia barrenta cálida das praias a norte. Ainda há outeiros ancestrais para subir com horizontes secretos lá em cima. A Maria Correia continua à minha espera debaixo das estrelas lentas. Portanto, há o conhecido das respostas e o efeito das perguntas. Ontem ao jantar, percebi que me falta conhecer a janela do bar de São Joaquim onde se vai cumprimentar o Pai e o Filho, singrando em todo o seu esplendor. E enchi-me de vontade de lá ir, de preferência num dia bem iluminado, onde possa embaciar os olhos. Na verdade, tornamo-nos sempre mais humanos perante a maravilha. Mas como dizia, somos perfeitos. Somos as peças reais do tabuleiro da vida, e é indiferente se elas são pretas ou brancas. É a mesma coisa de ambos os lados. Depois de o primeiro peão estar entre os dedos, a escolha está feita e só interessa jogar. Não representamos, vivemos a nossa estória, sem armas na cintura e sem o vagar dos grandes planos. Que importa o que parece a grande bola do mundo do lado de fora, se aqui temos a terra inteira pela frente, onde todas as cores são possíveis. Há tantos percalços para nos entretermos. O carro aos solavancos até à Roça, até à praia. A falta de electricidade que já faz parte dos dias. A demora do material a chegar. Todos viemos de longe. Às vezes, há um pulmão de ferro por dentro, naqueles dias em que a saudade toma a forma de fome e temos de a consumir. Hoje era dia de bacalhau à Brás e não pude lá estar. Hoje, o pequeno pássaro inglês que voa entre estes céus parecia uma curta-metragem antiga em preto e branco, na qual eu mudava de pedaço de terra. Vim com satisfação. São Tomé é maior e está mais perto de casa. Olho as tais feridas por fechar. Lembro-me daquele minuto em que o horizonte na Paciência cheio de cascas de coco e com todas as marcas nas minhas pernas me pareceu uma boa fotografia. Hoje parece-me uma boa capa para o texto. Acho que sou daquelas pessoas que combina com a Natureza. Que olha o céu e se perde em filosofias, feliz por se guiar nessa magia em vão. Feliz hoje com um trago de sumo de fruta fresca. Bem-haja a fruta. Bem-haja a vida dos que estão vivos e estes olhos negros gigantes que guardam tristeza mas riem para fora, ternos, fitando-nos com um sorriso. Hoje, estou cheia de comparações. A selva mística ficou para trás mas já fiz um vídeo com as andorinhas a espantar uma palmeira no Omali. Fui ao centro. Vi táxis amarelos, muitas lojas e muita gente na rua. Foi como se tivesse chegado a outro ponto do Universo estranhamente familiar. A beleza desta trajectória é perceber que ainda estou sob o efeito das privações do Príncipe, da rotina da vida mais simples. Hoje, até uma garrafa de amendoins torrados é suficiente. Mas perfeito perfeito é um copo de mousse de chocolate e um café. Afinal, somos humanos.




