A Natureza vai tornando tudo um mistério. Este edifício invadido pela floresta que está localizado na Roça do Porto Real era o antigo Hospital da Ilha. A pessoa que nos traz cá, nascera ali há 40 anos. Visitando a ruína, vamos imaginando o hospital que aqui houvera. A pessoa que nos traz cá, aponta a sala de partos. Seguimos-lhe o dedo e olhamos uma sala invadida por raízes, castanhas e avermelhadas como artérias vivas de sangue, agarrando os pilares. Parecendo já indissociáveis, as raízes e os pilares. O seu abraço é muito forte, é tentacular. Há outras raízes que, soltas, descem dos tectos como se fossem cabelos. Agarro-as com a mão, por um instante, procurando as terminações nervosas dos Na’vi de Pandora. Sente-se a presença bendita da Natureza invasora. Pé ante pé, seguimos com cuidado sobre as folhas mais velhas que caíram mortas entre terra repleta de vida nova, brotando pequenina. Os telhados que os homens fizeram também já foram destruídos mas os ramais das árvores verdes vão cercando tudo por cima. Olhando acima, sobra uma cruz enfeitada de folhagem na fachada do lugar que haveria de ter sido o hall principal. O resto foi engolido pela Mãe. Porém, apesar do desapossamento humano, não é um cenário de destruição, pelo contrário: é um espaço de ressurreição, com entremeios de luz e a beleza da vista do Pico Papagaio como se fosse um quadro realista exposto no corredor. É perfeito. É uma amostra de toda a vida que a Natureza consegue deitar pela terra fora, se ninguém a impedir. Não há uma planta que se diga estar fora do lugar, ou um caule despenteado. Há mil órgãos vegetais, cheios de nervuras e de olhos verdes postos em nós. E nós espraiando espanto com o nosso olhar sobre eles, com a certeza não bem compreendida de que: Se não impedíssemos a natureza de crescer ela tomaria conta de tudo.







A propósito desta visão mais holística em que tudo integra um todo, hoje quando vinha do Picão dei boleia à Cilene no cruzamento para a cidade. Sentou-se no banco de trás dizendo que tinha de ir à igreja. As pessoas da ilha são muito religiosas, além de conversadoras e eu sinto-me uma espécie de motorista de táxi quando levo alguém comigo ávido de seguir a marcha a motor. E ali estava ela, firme e desgraciosamente à espera que alguém passasse e a pudesse auxiliar, pois o marido, o Zézé – que (fiquei a saber que) é motorista do autocarro amarelo do Belo Monte -, não podia seguir o caminho da cidade pois tinha ido buscar turistas ao aeroporto. Perguntou-me se tinha passado por ele e de facto (5 minutos antes) eu havia-me cruzado com 2 mini-bus amarelos em sentido contrário. Era por isso que a Cilene estava a pedir boleia quando eu passei. Depois disse-me que tinha de ir à igreja porque era muito importante ouvir a palavra deixada por Deus. “Ouvir a palavra deixada por Deus“, pensei. Algo como eu havia feito no Antigo Hospital. Perguntei-lhe se Cilene se escreve com “Cê” ou com “Ésse”, “- É com Cê. Com Cê”, respondeu-me, antes de se despedir em frente à igreja. E assim a deixei, Cilene com “Cê” de cruz que não cai, mesmo quando a Natureza toma conta de tudo.







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