À boleia da Francisca

A imagem de as pessoas serem transportadas na caixa das pick-up reconduz-nos a África. E depois de tantas centenas de carrinhas, na sua maioria brancas, me atravessarem os olhos com homens levados atrás, deixa-me a pensar se, na Europa, por alguma ocasião terei observado passar um homem sentado na caixa aberta de um veículo. Pergunto a uma amiga por telefone ao que me responde: “Claro que não! Isso aqui é impensável!” E enquanto por cá, no paraíso insular, é raro aquele que viaje com a caixa aberta vazia, por aí, na civilização lusa, no progresso europeu, nem se pensa nisto. Não se permitindo, assim, que as pessoas sejam transportadas fora dos bancos, onde atrás de cada ombro espreita uma legislação impiedosamente impondo regras diferentes. Portanto, a gente apanha o avião em Lisboa e quando chega a São Tomé retrocedeu, ao cabo de 6 horas, talvez mais de 6 décadas, não sei bem.

De toda a maneira, andar à boleia é o transporte mais usado e desejado na ilha. E a ironia desta história é que, como dizia um colega, a melhor parte é quando batem na caixa assinalando o lugar onde querem parar e ao descer te devolvem aquele sorriso honestíssimo que é o modo com que, no auge da sua satisfação, te agradecem a viagem. Te agradecem não terem tido de caminhar aqueles quilómetros a pé, e com os objectos que levavam. Te agradecem a rapidez do trajecto e o jeito que lhes deu. E te agradecem também por não os teres ignorado. No outro dia, demos boleia à Daniela, sem que nos tenha pedido nada. Uma menina com não mais de 8 anos, que carregava um garrafão de água na cabeça e outro de 5 litros no braço esquerdo que equilibrava com mais 5 no direito. Lamento não ter fotografado a sua expressão de pura liberdade na caixa da carrinha, enquanto tamponávamos os garrafões com as palmas das nossas mãos para que nenhuma água se perdesse entre nós e os assentos. Se estes pequenos não são os grandes heróis do mundo, eu não reconheço outros. Mas quando conduzo não dou boleias na caixa. Não é seguro. A caixa inventou-se para levar material e os bancos interiores foram criados para receber as pessoas. Porém, há alguns dias, quando vinha a sair da Roça no final do trabalho, aconteceu-me olhar um senhor da janela, que entendeu que lhe dera autorização para avançar para dentro da caixa. Subira ele mais os seus sessenta, talvez perto de setenta anos. Saí do carro e ele disse “Vou trabalhar para o Hospital”, falara com uma simpatia e calma tremenda; então abri-lhe a porta de trás e retorqui: “Se quiser vir para a cidade eu levo-o mas não aí. Na caixa não levo ninguém; é muito perigoso”. Não sei se ele percebeu onde haveria perigo, sendo que ao longo da sua existência, bem maior que a minha, não há-de ter experimentado outro meio mecânico de transporte, mas por ver-me imóvel a segurar-lhe a porta aberta da 4×4, desceu paulatinamente e lá foi sentar-se no banco de trás, com um ar um pouco inusitado. Mais à frente disse: “A doutora conduz bem, devagarinho, nem dou salto nos buracos.” É certo que dentro dos carros o efeito dos desníveis é muito mais atenuado, mas sorri ao ouvi-lo; depois perguntei “Como é que o senhor se chama?” e ele devolveu-me os seus quatro nomes como se eu fosse uma autoridade.

– É curioso que às crianças tem de se fazer a mesma pergunta mas de forma mais simples, assim: “Qual é teu nome?”, ou normalmente não respondem. Penso que a partir de certa altura respondemos de modo automático porque em exatidão a pergunta tal qual a fazemos não é lógica: ninguém deveria responder como se chama pois ninguém chama por si próprio. –

Chegados ao hospital, deixei-o com a sua gratidão comovente, acenando-me naquele sorriso que não cheguei a ver desaparecer-lhe do rosto, demorando também ele a afastar-se da carrinha.

A estrada continua a ser um cenário de muitas surpresas. Daquela outra vez, a caminho do Belo Monte resgatei um leitão acabado de nascer que ainda nem tinha aberto os olhos.

Uns metros à frente parei para ler os versos do painel de azulejos à entrada da propriedade: “Lo que puede el corazon/ Solo lo sabe/ Quen lo Pone/ En la obra“, e à vinda, já a descer para o Picão, uma senhora acenou-nos boleia quando passamos. Travei a carrinha e ela começou a correr. Antes que chegasse, abrimos a porta de trás, e deixa-mo-la sentar-se com um sorriso esplendido.

A Francisca trabalha no Belo Monte mas já vinha com umas centenas de metros feitos sob terra batida lamacenta. Contou-nos a sua vida, falou dos 4 filhos: 2 meninos e 2 gémeas mais velhas. Um dos filhos está a estudar medicina. Sentia-se o orgulho dela ao falar sobre isso mas ainda bem que o tem porque fazem muita falta mais médicos na ilha. A Aurora queria ver as plantas do café e da baunilha antes de voltar para Portugal e pedimos à Francisca que nos as indicasse, se fosse o caso de nos cruzarmos pelo caminho com algum cafezeiro, ou flor de baunilha mas disse-nos que a baunilha que é uma orquídea não poderíamos ver pois ainda não era tempo dela. Minutos depois estávamos no pátio de casa de um senhor, conhecido da Francisca, para ver o café no arbusto e em semente (afinal não é um grão); entre outras plantas, numa espécie de circuito privativo guiado à flora do Príncipe. Assim, aprendemos de onde brota o café e retive folhas verdes de canela nas mãos, com o mesmo cheirinho do pau e do pó que conheço no tom da canela comercializável. Por cá é um facto que todos se conhecem mas a intenção de se criar este ânimo através de pequenos gestos é algo que acontece naturalmente: misturam-se as pessoas, e da mescla de locais e forasteiros (como eu sou), estamos permanentemente a ganhar conhecimento. Por causa de uma boleia, a Francisca não hesitou em devolver a gentileza com tempo e paciência, mostrando e partilhando um pouco da cultura local. E assim nos contagiamos enchendo as algibeiras daquela moeda de troca que é a arte de fazer o bem.

Se calhar o segredo da vida aqui, nesta terra com muitas mais pernas do que pneus, é deixarmo-nos seguir cada um à boleia da sua providência, dando as mãos na mesma língua portuguesa, e sentindo nos bolsos o peso da gratidão.

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