Águas de Maio

Em Março a letra dizia que era pau, pedra, era o fim do caminho. Em Abril começou outra canção e seguiu-se Maio, com a rapidez de um traço de criança que diz: isto era a chuva. Deixando-nos adivinhar que a bola no canto da folha é o sol. As proporções não condizem mas se aquilo estava lá e a criança diz então essa é a verdade. No entanto, não chove há alguns dias, e consigo levar a carrinha até à praia sem usar a tracção às quatro. Às vezes, as palavras são mais simples do que a geometria dos desenhos, dos paus, das pedras, das incertezas do caminho. Tudo tem uma forma excepto as nossas quimeras, as que medimos com os próprios passos e com as almas inquietas, sem noções de matemática, deixando esses números em segredo só para nós.

Foi na terceira visita à Praia Banana, na propriedade Belo Monte, com mais de um mês de estadia na Ilha, que me deram a provar água de coco, e me desafiaram a trincar pedaços daquele fruto fresquíssimo. Só me apeteceu gritar Obrigada. E disse-o mas em voz baixa. Pois há lá coisa mais verdadeira do que um coco acabado de partir a chegar-te à boca. E estava um dia quente com a bola no canto superior da página radiante por existir. Há dias em que as pessoas mais genuínas mais improváveis te transportam para lugares de gratitude. Pessoas que provavelmente nunca mais encontrarás.

O Silva trabalha como security na propriedade e em paralelo dedica-se a trabalhos de bijuteria. Trouxera o coco para beber enquanto trabalha, da mesma forma que nós traríamos uma garrafa plástica com um quarto de águas. E em vez de desatarraxar uma tampa de plástico que demorará 500 anos a desfazer-se, ele segura o coco com a mão esquerda e começa a rodá-lo na mão, cutucando-o com a catana. A vida é assim prática, simples, ao alcance do que se consegue agarrar. De nada me vale, olhando-lhe a belíssima mão negra em perigo, fazer avaliações de risco, considerando cortes e amputações. Estou naquele momento, a pensar onde deixei a carrinha com a mala de primeiros-socorros lá dentro, e parece-me longe. E agora aquele risco de acidente iminente sem quaisquer medidas de prevenção. Peço-lhe que tenha cuidado. Mas o Silva nunca se cortou a abrir um coco em toda a sua vida e as estatísticas também falam, neste continente onde os homens já nascem de faca na mão.

Entre nós, a vida é assim levada com um sabor de confiança. O Silva apanha sementes vermelhas a que chama olho-de-pavão, Carolina, olho-de-dragão. Eu prefiro o último nome porque aqui há dragões, isso eu sei. O Silva também apanha búzios na praia e, por meio de instrumentos fabricados artesanalmente, fabrica colares e pulseiras para vender, trespassando-lhes um fio de pesca usado que arranjou nos pescadores. Para furar as sementes tem um pedaço de madeira com pequenas concavidades nas quais vai acomodando as peças para as perfurar, uma a uma. A arma usada é um ferro afiado numa das pontas. É muito curioso como estas ferramentas arcaicas pertencem a tempos distantes deste século, enquanto que a matéria-prima e o ambiente são imutáveis: as conchas, as sementes, os coqueiros, a areia, e a própria imagem da praia.

Vemos as folhas cair das árvores e, naquele caso, as bagas-semente que abandonam as vagens dos galhos e ali ficam coradas para sempre naquele encarnado perfeito, brilhante como se fosse mesmo um pequeno olho vivo. Comprei o colar só com sementes vermelhas que custava 8 euros, pagando-lhe 200 dobras, observando o saco meio-cheio de conchinhas e a ouvir o mar chegar à costa. Por ouvi-lo, olhei em frente sabendo tanto sobre o que há para além da água e sabendo tão pouco sobre este lugar daqui, com a noção de ser o mar quem tudo conhece sobre os nossos passos na Terra. É como se a Natureza, de seu nome maiúsculo, tivesse nascido no nível mais avançado da sua inteligência e não nos tivéssemos apercebido. Li há uns meses que nada é mais doce do que a Natureza para o Homem e que nada é mais cruel do que o Homem para a Natureza. Não me recordo do autor mas seria certamente um texto sobre homens de outras geografias. Aqui os homens continuam sãos para com Ela. Sublimando a Sua existência como nós, estrangeiros, que aqui chegamos com os olhos cheios de maravilha, abrindo-os, afastando as pálpebras para cima, no impulso de quem tenta desfazer a impressão de um sonho, fixando o mar em volta, limpando a boca com a palma da mão ainda sentindo o sabor a coco, para perceber de repente que já estamos em Junho.

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