Moeda de troca

Normalmente, durante o período de almoço atravesso a estrada onde se estende o mercado. A rotina varia ligeiramente mas saio da carrinha num lugar um pouco ao acaso para tentar encontrar rapidamente o que preciso. Ao atravessar a estrada estou atenta às bicicletas que se movem em silêncio e olho em ambos os sentidos da via. O Sol ao meio-dia está alto e quente porque é sempre verão nestas paragens junto ao Equador onde o mundo se divide em dois. Assim, misturo-me nas bancas de frutas e legumes assentes em terra batida, que se multiplicam à sombra dos chapéus de sol. Habitualmente escolho alguém que me interpela para me vender as hortaliças e a fruta; mas é desafiante porque sinto que toda a gente acena e grita “Madam, here!“. Com o tempo passo a conhecer algumas pessoas cujas vidas se passam ali. Já sei onde escolher os ovos que não estão estragados apesar de empilhados e expostos ao sol. As bancas onde a fruta se exibe também servem para deitar os bebés, mudar-lhes a fralda. Assisto a estes acontecimentos com a naturalidade que têm e sem fazer julgamentos. Há peixe à venda no chão e uma espécie de petinga seca. Há pimento verde, maracujás, e batata doce em doses pré-acondicionadas envoltas em celofane. Há limões, bananas e grandes cachos verdes de matoke. Vejo pratos de plástico ressequidos com restos de comida, não há propriamente horários para almoçar, e de entrada ou de saída. Ali a vida está simplesmente a acontecer. Além dos frescos para a minha dieta, tento comprar cenouras e couves para os coelhos que salvei da coelheira na casa dos colegas da empresa; peço couves no idioma local “Sukuma wiki” a um senhor que também já me conhece. Diz-me que hoje já vendeu as que tinha mas num impulso sorri e o rosto abre-se com a expressão de quem tem uma ideia resolutória para o meu desejo; faz-me sinal abanando as mãos para que espere, e desata a correr. E eu deixo-me ficar a vê-lo desaparecer enfiado-se depois à direita para uma parte central do mercado que só visito ao fim-de-semana quando ando a pé. Poucos minutos depois vejo-o regressar alcançando-me com três pencas que darão para dois dias (É curioso como os coelhos comem muito mais e dormem muito menos do que os gatos; até então os gatos resumiam toda a minha experiência com animais domésticos.) Entrego-lhe notas a mais pela generosidade de ter ido buscar as couves e me ter poupado tanto tempo. O movimento do mercado é este: frenético, cheio de cor e saúde, saturado de gente e, no entanto, é cadenciado, como se estivesse organizado dentro da comunidade. Lembrei-me que Geoffrey Oryema nasceu em Soroti, nesta vila que habito, e a canção Dia de Mercado tem o ritmo que experimento aqui. A letra fala de uma irmã que gasta o dinheiro da manutenção da casa em maquilhagem barata e é provavelmente algo que vai acontecendo com várias outras nuances. Nesta terra o dinheiro é escasso no seio da população. Não encontro os contrastes de Kampala, que são visíveis através dos homens trajados de fato, pastas de pele, bons gadgets e automóveis de gama alta parados nas filas infernais de trânsito. Aqui não há trânsito, os carros são limitados às empresas, a população é pobre mas é desprovida de recursos de forma igual e por isso se percebe claramente esta noção de comunidade. Dirijo-me para casa em marcha lenta por causa das crianças e do excesso de pessoas fora dos passeios. As cores e aquela frequência que seduz, pertencem à música de Oryema apesar de também clamar paz nas suas canções, sensível ao que viveu. Em 1977, o pai (que era então ministro de Idi Amin) foi assassinado, e o músico com 24 anos fugiu para o Quénia dentro da mala de um carro, exilando-se depois em França. Regressou ao Uganda 40 anos depois, onde veio a falecer. E ali me encontrava eu, numa terra de empréstimo, onde o mundo longe da metrópole ganhava outra realidade.

Sempre acreditei que o apelo de Africa me viesse dos animais, pela sua condição selvagem, pela minha curiosidade em relação a esse seu estado mais puro, mas hoje sinto que são as estas pessoas a verdadeira razão, porque se apresentam em carne crua porém a conexão que estabeleço com elas é evidente: convergimos enquanto humanos. Um dia ao sair do supermercado dos indianos vinha a beber um sumol e um ugandês veio pedir-me a garrafa e eu dei-lha; ele seguiu satisfeito a beber o resto da bebida com uma postura ganhadora e contente. Não sentiu que tinha de agradecer, era como se a minha obrigação de partilhar fosse a ação mais esperada naquelas circunstâncias. Não é o facto de ele me abordar e pedir o sumo que me faz pensar: é o meu próprio tomar de consciência – que lhe estou a entregar a garrafa de imediato quando ma pede – que me faz verificar que estou diferente. E tenho-me permitido a um reconhecimento de mim mesma a cada nova situação. Estar com estes povos tem pouco de banal. Gosto de observar que não há subterfúgios, não vestem outros personagens. Os dias são ricos em histórias só por se andar na rua. África é um universo um tanto ébrio e um tanto estranho. Não há episódios frívolos, em geral, a palavra normal como a conheço adquire um outro contexto e um outro significado e essa é a graça de tudo o que se experiencia ali.

Durante muito tempo fui a única mulher branca a deambular na vila e no mercado, e por isso fácil de identificar e com quem estabelecer algum nível de confiança. Talvez porque cumpro com a minha palavra: porque se lhes prometo voltar volto, tratando-os com seriedade e consideração. Às vezes tiro fotografias com os locais. E um dia, um Domingo, ocorreu-me procurar uma loja da vila para imprimir uma dessas imagens e oferecer a uma das senhoras. Na semana seguinte levei-lhe a fotografia mas ela não se encontrava no mercado, e deixei o presente dentro de um envelope na banca vizinha. Tenho a certeza que, no seu regresso, a senhora terá apreciado o gesto. Agraciar estranhos é uma forma de praticar atos de random kindness como sugere Simon Sinek e a generosidade não se gasta, na verdade há algo bom que volta para nós. A satisfação que advém desses gestos que se fazem pelos outros enche-me de alegria: é uma feliz moeda de troca. O mundo precisa de mais amor e de histórias de compaixão para assegurarmos a nossa sobrevivência.

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