
Encontrei-a à entrada da loja de tecidos, deitada numa esteira de palha, com o rosto aberto numa expressão doce, envolta numa aura quase palpável de felicidade. Pensei instantaneamente que me encontrava num estabelecimento singular, com uma pessoa deitada no chão, à frente do balcão, enquanto aguardava por clientes. Além da esteira, vejo outros elementos que não deixam dúvidas: uma almofada de dormir, um tecido a cobrir-lhe as pernas, e os pés descalços em sinal de máxima liberdade. Este episódio surpreendeu-me por se tratar de uma variação de uma situação bastante comum, e considerei estar na presença de um facto estranho. Mas eu só o sentia estranho porque aporto preconceitos da educação de onde venho, pois o ato em si não tem nada de errado. Na verdade, pensando um pouco, até me parece correto uma pessoa estar natural e confortavelmente instalada enquanto não aparece ninguém para atender. Em que medida estaria a prestar-me um serviço de qualidade inferior? Pelo contrário: pareceu-me mais descontraída neste estilo informal e disposta com outra energia e vitalidade.
De cada vez que me misturo com outra cultura completamente distinta, ganho a oportunidade de repensar as convenções que trago desde sempre. E são estas pessoas simples, sem pressa, como o próprio nascer do dia, que não se atropelam em múltiplos afazeres, que simplesmente existem nos seus momentos presentes. Durante o amanhecer, a luz vai aumentando devagarinho naquele ritmo natural do mundo, inalterável e sempiterno, como estes povos que se permitem esteirar à entrada das lojas. De onde venho, as regras são outras. Seria praticamente impensável alguém estar sentado à entrada de uma loja quanto mais que se deitasse. Para certas profissões (consultórios, laboratórios) é aceite que se esteja sentado atrás da recepção mas nunca à frente. No comércio do retalho, o cliente é servido com outro mise-en-scène. Agarramo-nos a etiquetas e formalismos em relação a situações básicas do dia-a-dia que nos condicionam os movimentos, quase como se se tratasse de obedecer a manuais repletos de instruções protocolares sobre saber-estar e saber-fazer. Em África não se vê mal nenhum onde o mal não existe. Há por isso muito mais liberdade, originalidade, criatividade em tudo, a começar nas pessoas que se apresentam de maneira genuína porque deixam-nas ser exatamente o que são. Fascina-me a verdade que transmitem. E todos os rostos se iluminam quando irradiam verdade.
Nesse primeiro minuto, depois de lhe dirigir um Bom dia, disse-lhe que era muito bonita e perguntei se me deixaria fotografá-la. Acho que se surpreendeu com agrado pelo elogio pois antes de dizer que «sim», endireitou a postura, sentando-se, prontificando-se para a fotografia. Há muito percebi que, em geral, as pessoas são dóceis durante a infância e com a idade vão perdendo esse atributo. Sem darem por isso vão sendo sujeitas a sucessivas transformações, ao ponto de se tornarem incorrigíveis, mas a definição de amabilidade vive estampada no rosto das africanas, é como se vivessem num estado pueril, virgem de ser. Não recusam quando pedimos algo como uma fotografia. Partilham a sua alegria prontamente a tal ponto que acredito que entendam que a fotografia é muito mais do que um mero retrato, é um pedacinho delas que se leva connosco. Mas como a vida não compreende só receber, a retribuição é uma forma de se mostrar gratidão – de resto muito bem recebida em qualquer parte do mundo -, portanto, fiz questão de encontrar algo para trazer da sua loja. Acerquei-me dela para lhe mostrar o tecido em tons fortes de vermelho, amarelo e preto que comprara aos indianos uns passos antes. Era semelhante a uma Kapulana angolana mas com figuras geométricas que se chama Samacaca e perguntei-lhe se teria algo parecido.




Apontou-me um pano de algodão leve com acabamento em cera (tecido “wax”), que é muito característico das roupas das ugandesas pois confere aos modelos um toque suave, brilho e sustentação. Era um tecido vibrante, laranja forte com um estampado de cabaças. Comprei como se fosse feito de raios de sol e fios de palavras entrelaçados. Era a materialização dessa memória que agora passo para o papel.
