
Com o Super Linox afastado de Setúbal, há que procurar novas formas de Arte na cidade. O desaparecimento das peças-surpresa unicoloridas, “monólitos”, leva à necessidade de se respirar algum outro poema, naturalmente envolto em menos mistério: algo que possa ser suficiente para ativar a capacidade de continuar alerta porque uma boa respiração é sempre o melhor ingrediente para manter o espírito são. É assim tempo de procurar novas abordagens. Às vezes basta mudar a forma como se olha para as coisas para mudar também a energia que se recebe delas; levando algo a fermentar-nos por dentro, um quê que possa migrar, espargindo beleza no seu caminho, e, ainda que superficialmente, faça sublimar um momento em sonho. Mas o primeiro passo é ir de encontro a uma peça artística, dar-lhe olhos, segurar-lhe a mão sem lhe tocar, depois ouvir a obra e questioná-la para lhe dar entendimento. Permitir-mo-nos a este olhar ávido de curiosidade é como regressar à infância, e voltar a ser criança.
Desde há 2 dias que a escultura-instalação de Michelangelo Pistoletto está exposta no Museu de Setúbal (Convento de Jesus). Lê-se no texto analítico da legenda da parede que esta obra não é algo novo; existem várias versões desde 1967 que convidam mais recentemente à reflexão sobre o consumismo, a reciclagem, a exclusão social e a migração. São quatro peças que me deixam a pensar na sua inter-relação e parece-me lógico separá-las em dois grupos: o primeiro par (consumismo e reciclagem) e o segundo (exclusão social e migração). O consumismo é fácil, é desistente, é fútil e contém frustração. A reciclagem é uma consequência prática do atual caos, no intuito urgente da adoção de políticas de sustentabilidade para conservação das matérias-primas e dos recursos naturais. A exclusão social e a migração agregam pobreza mas levam esperança; um homem quando tem pouco pensa sempre como Martinho da Vila canta que a vida vai melhorar: a experiência da repetição da vida por vezes cansa mas ela é sempre doce na imaginação. E isto leva-nos ao objetivo mais primordial da Arte: o de nos fazer imaginar e usar o sentido da criatividade. Apesar disso, e além da muita cor que aleatoriamente ali se amontoou sob a forma de fragmentos têxteis, esta obra tem uma dose interessante e talvez até consciente de humor: a deusa romana espreita o interior de uma pilha de roupa usada, de costas voltadas para o espetador. Onde quer que nos encontremos na sala somos impossibilitados de lhe ver o rosto, como se representasse um sujeito totalmente imerso numa sociedade ocupada em gastar. Não surpreende que a instalação convide à reflexão. Em 2017, uma versão parecida com o rosto a descoberto apresentara-se na Bienal de Veneza; de resto, com o avançar do tempo, faz-me sentido atualmente a pilha de trapos ser maior. Nesta instalação não vemos a cara de Vénus, ignoramos-lhe a expressão, e da sua linguagem corporal poder-se-ia dizer que se retrai. Talvez até chore, envergonhadamente, escondendo de maneira deliberada o rosto. E porque a vida alberga alguns perigos, a representação dramática da jovem mulher pode ter outra razão desconhecida; é igualmente possível que se tente esconder por reação a alguma ameaça externa, e embrenhar-se na roupa poderá ser a sua forma de autoproteção ou de fuga dessa mesma circunstância.
A Arte pode representar medos, perigos, vergonha ou qualquer outra coisa mais positiva. O que me faz pensar que Vénus se está a rir! A rir do amontoado de roupa, do excesso em que montamos as nossas vidas; rir do ridículo em que o mundo se tornou. E Vénus ao ver-se impossibilitada de cobrir o rosto com as próprias mãos, enterrara a cabeça no objeto macio, para não exibir a vergonha de pertencer a um planeta onde há um excesso de tudo e onde, paradoxalmente, a riqueza parece distribuir-se de maneira muito pouco equilibrada e justa. Todo o cenário leva a crer que a deusa grega pretende separar-se de nós para o seu mundo interior. Ou tenta simplesmente esconder a sua verdadeira identidade, embora o desnudar da carne pareça significar alguma falta de pudor, ainda que a palavra seja tremendamente subjetiva. Mas a Arte é também a prática dessa liberdade de exibição da nudez. E depende da sociedade, do espaço geográfico, e se é livremente autorizada ou repudiada. No andar de cima do museu, Bocage é representado rodeado pelas suas musas, pelo pincel de Fernando Santos em 1929. Contudo, há registo do mesmo problema: no início da década de 50 o quadro foi restaurado no sentido da atenuação da nudez das figuras representadas.

Seria preciso esperar uns bons anos para se ser fiel e livre de censura em relação a uma ideia original. Portanto, dependendo do Tempo e não só da geografia, a tolerância de cada cultura tem um efeito direto na celebração ou na aceitação da anatomia humana enquanto matéria de Arte. A Grécia Antiga é pioneira na representação do nú. Não admira portanto que Vénus se apresente de nádegas expostas no Convento de Jesus. Mas mesmo assim, parcialmente tapada por um lençol, e evitando maior motivo de crítica e desaprovação pública por se encontrar de costas, da mesma forma que Velásquez a retratou ao espelho de Cupido por alturas de 1650. A Arte é pois uma ferramenta, e em sentido mais lato existem inúmeras definições e não calculo que haja afirmações mais certas ou mais erradas. René Magritte disse que “A arte evoca o mistério sem o qual o mundo não existiria”; uma experiência, uma interpretação, um modo de ver, de pensar. Então para que serve a Arte? Justamente para que possamos descobrir um sentido em relação ao que estamos a experienciar. Devemos aproveitar para a inspecionar sobre múltiplas perspetivas, estudá-la, tentar compreender a pessoa que a desenvolve e materializa; depois, estabelecer um diálogo intemporal com esse seu autor reconhecendo que contemplamos uma resposta antes de formularmos uma pergunta. Ou então aceitamos a obra como resposta e inquietamos a alma com a busca da pergunta, da linha, da ideia primordial.
Eu dizia atrás sobre o grupo da reciclagem e do consumismo. Agora olho esta Vénus e vejo para além dela uma espécie de carrossel que a transcende como se fosse a rodinha do rato. Durante quanto tempo mais se desejará viver assim? Na marcha do consumismo, da acumulação, da substituição não consciente do velho pelo novo. Por causa da Revolução Industrial, ensinaram-nos erradamente a aumentar a quantidade de coisas de que não necessitamos para viver. E na nossa sociedade o direito a ter não é garantia de todos. Os mais desfavorecidos são deixados de lado. As desigualdades são agudizadas e é aqui que os dois grupos se unem. Com efeito, está tudo diretamente relacionado. Atualmente, encontramos várias aplicações para vendermos artigos e roupa em segunda-mão, e para comprarmos quer novo quer usado. O que não nos serve envia-se para as instituições que tratam dos desajustes. Quem anda por África sabe que as trouxas de roupa enviadas dos outros continentes acaba nos mercados de rua: são vendas espalhadas em quilómetros ocupados de terra vermelha. Os africanos não precisam dos nossos caixotes do lixo. Convertem esses carregamentos em dinheiro mas não reutilizam os artigos. E sobre a migração por sobrevivência, pode ler-se na edição de hoje do Público que “Segundo a OIM, em 2021, registaram-se 4418 mortes de imigrantes, e desde 2014 foram aí contabilizadas 45427 mortes. A odisseia de chegar ao “condomínio fechado” europeu fez com que a travessia da fronteira líquida do Mediterrâneo a convertesse na mais dramática das fronteiras, com 22941 mortes de migrantes em oito anos.” e desconhece-se ainda o impacto que esta afluência de pessoas irá ter na Europa nos próximos tempos. Exatamente há 21 anos, estávamos em 18 de dezembro de 2000, quando a ONU proclamou este dia o Dia Internacional do Migrante. Hoje os homens continuam a migrar, o lixo continua a aumentar e continuamos entorpecidos. A Arte ajuda a destapar os olhos das Vénus para que todos possamos ver melhor a grande máquina a boiar azul no espaço.