Karamojong

​Aproveitando o feriado muçulmano de 20 de Julho, decidi orientar a bússola a Nordeste para tentar reviver uma experiência. Para isso, combinei às 10 horas da manhã com o motorista. O Jimmy trabalhou na região do Karamoja durante 5 anos, pelo que deveria ser um bom anfitrião. Mas como sempre penso “quando lá chegarmos logo se vê”. Cada vez prezo mais a enorme liberdade de decidir na altura o que fazer; a vasta possibilidade de seguir ao sabor do momento. Por isso, assegurar o transporte foi a única preocupação. O dia começa cedo, apresentando-se cinzento. Antes de sair, fiz uma pesquisa rápida na internet para perceber que o acesso às aldeias está aparentemente condicionado às visitas organizadas pelos guias locais: tudo pré-combinado/ pré-agendado. Mas não me fascina ir atrás do mundo carregando um livro de instruções, porque nunca nada é exatamente como se prevê. De qualquer forma, através do Google Maps, a viagem até Moroto estimava ter a duração de uma hora e meia, mas rapidamente se revelou mais prolongada. A estrada que liga Soroti a Moroto tem lombas em grupos de quatro ondulações de asfalto perfeitamente paralelas que se sucedem em intervalos de cerca de 50 metros. Também por causa disto, a pequena viagem irá estender-se no tempo. Depois há uma sucessão de transeuntes caminhando ao longo da linha contínua da estrada que percorremos. É curioso não haver passeios em África, justamente no continente onde os caminhantes mais abundam. Talvez pela falta de eletricidade as pessoas vivam grande parte dos dias sentadas à soleira da porta de casa: as mulheres ocupando-se das refeições, da roupa, e das crianças ainda bebés. Por volta dos cinco ou seis anos, muitos pequeninos já são os pastores da família. A Fernanda que me acompanhava no carro e me leva 10 anos de avanço em experiências de trabalho em África, dizia algo com um sentido assim: “Todas as Áfricas têm sempre pessoas a caminhar pela estrada” e há-de ser uma reflexão comum. É que além das motorizadas e bicicletas e de alguns outros veículos, há sempre alguém a surgir pelo meio dos campos, dos montes, ou em pastorícia. E até levando um jerrycan transportado à cabeça como se o mundo ali fosse feito de pausas e tudo o resto fosse o próprio tempo como o conhecemos. Entre as distrações que vão passando pela janela, acrescentaria as vendas de fruta e os quiosques da Airtel nos locais mais improváveis. No início, era uma cadeira de plástico com um guarda-sol amarelo ou vermelho e uma mulher de segunda a domingo sentada nessa sombra, nesse lugar. Explicaram-me mais tarde que são os postos de trabalho das operadores que, em poucos minutos, recarregam o telefone com voz ou dados fazendo renovada a ligação entre uns aos outros. Mas como dizia, apesar da planura imensa, a figura humana em África está sempre presente no horizonte, e, ao contrário de tantos outros destinos, a maioria das meninas são já mães que carregam filhos ou irmãos às costas. E, naquele sentido que a vida aqui toma, há crianças que guiam o gado descalças aos 5 anos de idade, que seguem de cajado comprido, roupas roídas, corpo muito direito e cabeça levantada olhando acima do tamanho delas. Estes sinais são pouco próprios de criança, mas de criaturas dotadas de grande liberdade e confiança às quais foi subtraída a infância. Paradoxalmente riem, saltam e dançam. Muitos dizem-nos adeus quando passamos e é quando me rendo. 

Por sugestão do Jimmy, antes de sairmos de Soroti, compramos biscoitos e doces para levarmos às crianças da aldeia. Como sabemos que é difícil encontrar onde comprar comida pelo caminho, levamos também fruta e ovos cozidos. À medida que nos afastamos da cidade, as nuvens vão-se tingindo de escuro e alargando e a chuva começa a sarapingar no para-brisas. Lá fora, os caminhantes continuam descalços e no mesmo passo de antes. Tenho esta ideia de que a chuva nos apressa, mas aqui não. É só uma diferença do estado do tempo. Como levávamos doces, a certa altura, decidimos parar o carro para oferecer a dois meninos aleatórios que estavam junto à estrada. Estendemos a mão fora dos vidros, chamámo-los mas, em vez se se aproximarem, fugiam-nos. Atiramos os doces já com o carro em andamento e eles correram para os apanhar do chão. As crianças não confiam no estranho, no novo. Precisam de tempo. 

Finalmente chegamos a Moroto. Pedi ao Jimmy que nos levasse a uma aldeia para finalmente conhecermos os Karamojong. O Jimmy tinha o contacto de um amigo local e fomos ao seu encontro. Poucos minutos depois, apresentou-nos o amigo Richard, que humildemente perguntou se queríamos regressar no próximo fim-de-semana para organizar uma visita a uma aldeia pois nessa altura as estradas estariam secas. Explicou que devido à chuva do dia as condições das estradas de terra não permitiriam a passagem da pick-up. Pedi-lhe que fosse hoje. Gostava muito que fosse hoje. Tinha de ser hoje. No próximo fim-de-semana não estaríamos ali. Richard concordou fazendo o sinal de consideração, unindo as palmas da mão e anuindo um pouco com a cabeça. Repeti o gesto, e convidámo-lo a entrar no carro. A partir daqui ele deu as direções ao Jimmy para que nos dirigíssemos diretamente a uma das aldeias. À medida que vamos acedendo às estradas das comunidades locais vamos sendo observados com desconfiança. O carro passa e sentimo-nos observados por um núcleo comum. O olhar é como se fosse um ato coletivo. Uma inspeção de grupo, simultânea, que se percebe pelas cabeças girando pausadamente e ao mesmo tempo. As caras fechadas de receio. Não passavam sorrisos ali. Richard sai do carro para perguntar se podemos ser recebidos numa aldeia mais à frente. E esperamos que regresse com boas notícias. Observando à esquerda, vejo centenas de pessoas de idades várias sentadas e reunidas em circulo. Não reparei, porém, que não havia lá mulheres. Quando paramos o carro, uma série de crianças vieram espreitar-nos. Um menino correu em sentido contrário e lemos a palavra “Ronaldo” nas costas da t-shirt. Um jovem embrulhado nas tradicionais mantas Masai passou com auscultadores nos ouvidos. Apesar de a vida ser despojada percebemos que a distância entre as diferentes culturas vai diminuindo com o passar dos anos. As teorias já o dizem há muito mas eu gosto de ver, de explorar, de testemunhar. Depois da fuga do Ronaldo, num segundo, voltei a câmara para o lado esquerdo da janela e, sem o poder antecipar, uma fotografia fez todas as crianças dispersarem. Talvez fosse melhor esperar pela autorização e não assustar os meninos. Entretanto, o Richard chegou com o Local Council (LC1) Chairperson. Vinha vestido de blazer castanho e com botas de borracha. Outros seguiam-no nos trajes mais tradicionais. Richard manteve-se na mediação do encontro. Apresentamo-nos. Os locais queriam saber o que nos levara lá, a Komaret Village. Foram buscar-nos um banco de madeira comprido para que nos sentássemos mas optamos por ficar de pé com os ténis escorregando na lama. Muitos dos locais carregavam um pequeno banquinho portátil esculpido em madeira. Vieram sobretudo homens. Provavelmente os anciões da comunidade e também crianças. Numa breve apresentação, o líder da comunidade expressou grande satisfação por nos receber, declarando que a chuva nos abençoava a vinda. Mas antes da reunião houve uma reza (primeiro no dialeto Karamojong, depois em inglês) para chamar Deus a abençoar a nossa visita e para que nos sentíssemos muito bem-vindas. Explicamos que a curiosidade nos levara ali, para conhecermos um pouco melhor a sua cultura e hábitos; perceber de que forma passavam os dias, como se ocupavam. O líder da comunidade informou-nos que era o porta-voz das 600 pessoas, que os seus antepassados eram povos Etíopes, de natureza nómada, que se ocupavam da agricultura e da pastorícia. Na altura, não pensei nisto, mas há-de ser muito pouco comum a incursão de duas mulheres brancas naquela Província. Talvez tenha sido a primeira vez naquela aldeia. A Fernanda quis saber sobre as marcas no rosto que alguns ostentavam: pequenas bolinhas de relevo na pele, salientes, desenhadas ao longo da testa, e do rosto, e que diziam trazer também no peito, como símbolo de identificação e sinal de orgulho na sua cultura. Mesmo assim não nos sentimos no direito de fotografar essas marcas. Mas perguntamos se havia autorização para usarmos as câmeras. E sobre os doces que trazíamos para as crianças, perguntamos se poderíamos distribuí-los. A resposta foi positiva: “Yes…That is good. That is very good.” E fomos interagindo com eles com cada vez menos estranheza. Logo no início, um jovem que falava bem inglês de camisa azul ofereceu-se para se ocupar da minha câmera, libertando-me do ofício das fotografias pois, segundo ele, todos teriam mais confiança que fosse um membro da comunidade a fotografá-los. Concordei. A Fernanda ganhou a confiança das crianças, mostrando-lhes a imagem-espelho da fotografia de cada um no telemóvel. Eu experimentei algumas selfies incluindo-os. Pouco-a-pouco, fomo-nos deixando aproximar dos Karamojong. A certa altura começamos a distribuir rebuçados, chupa-chupas e biscoitos. De repente, vi um conjunto de mãos a aproximarem-se. É uma imagem indelével que revela o comportamento do povo africano: o estender da mão para receber. Em algazarra. No momento em que os os sacos ficaram vazios foi uma espécie de terminar da festa. O Jimmy veio lembrar-me do recolher obrigatório e que teríamos de chegar a Soroti antes das 17 horas. Faltava a gratificação. You give what you feel in your heart that you can give. O chairman estendeu-me a mão no momento da despedida, sem a largar. Não percebi o que me disse mas sei que era um adeus. E estava na hora de regressarmos, deixando o alarido das crianças para trás, crianças que eram já outras crianças diferentes, sem receio de nós. Então seguimos, levando o Richard ao mesmo local do encontro. Agradecemos-lhe. Sem ele, poderia ter sido apenas uma terça-feira de chuva, cinzenta. Mas certas cores e certas estórias não se devem adiar no tempo. Era para acontecer hoje. Amanhã podemos não poder continuar a andar. Karamojong significa isso “the old men are tired and cannot walk any further“.

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