Penso nisto com o mesmo encanto de quando em frente às duas obras: Murchison e Sipi Falls. O Uganda tem esta arquitectura de água que se ocupa em esculpir a pedra e zarpar. Em Murchison Falls, a erupção líquida é violentíssima, ruidosa e contínua numa espécie de contra-inferno. Vamos chegando perto e, de repente, parece que chove, mas não. São as inquietas vagas das cataratas largando cinza em forma de gotículas. Lá em baixo, serenamente, hão-de acalmar-se no leito profundo; mas essa parte não vemos. Em cima, tudo é apenas renovação. Cada passagem é um infinito de vozes abundantes que se misturam, numa espécie de ruído de hélice. E enquanto se me navegam os olhos, ouço: braços de água rebeldes em tormenta, gritam. Parece um parto contínuo ou um género semelhante de milagre onde os olhares mergulham num esforço de concentração e o resto perde-se. A sintonia das águas, e precisamente a sua força, compõem um espectáculo que é superior em intensidade ao da vista. São idiomas proféticos que se misturam e não entendo. Oráculos. Fecho os olhos. Ainda parece que chove mas não. É uma força que se deita na rocha acentuada e desliza. Com alguma névoa espessa, própria das boas fotografias. Cascatas de um cetim muito branco que se arrasta ao abismo, descendo a baixa velocidade. E, lado a lado, animais invisíveis cavalgam as pedras, preparados para o precipício e para as grandes distâncias até ao país dos Faraós. De palas postas, uma missão é uma missão. E o ar enche-se não só de águas transbordantes mas sente-se no rumor de fundo: o futuro a nascer ali, a vida desabrigada com um começo e um fim simultâneos. Esta semana, um amigo enviou-me o primeiro vídeo e reparei (desta vez sem lá estar) no tamanho daquelas águas à distância da câmara. 70% água, 30% para o resto. Se morasse perto, gostaria de assistir àquele episódio todos os dias. Mas não preciso de ver para saber como a natureza é una e ordeira. Uma força. Uma alma. Uma órbita. A natureza é incessante. Não se cansa, não pára, segue. Quando vamos de barco, a apresentação da queda das mesmas águas tem outra magnitude. A largueireza das margens com elas ao fundo transforma-as numa outra coisa, longínqua, enfraquecida, e a beleza panorâmica sobrepõe-se. 1/3 água, 1/3 terra, e 1/3 céu. Ao baixo. Mas há mais cascatas no Uganda.
Num luminoso Sábado de Junho para chegarmos de forma mais directa às Sipi Falls, avançamos os portões de um resort. Sentamo-nos. Vem um café oferecido pela casa enquanto aguardamos pelo guia. Olhando em frente, não há nenhuma água para tanto verde. Depois de recebermos os cajados, passamos uma placa inusitada que alerta para deixarmos os cães para trás; e avançamos através de um trilho ascendente de terreno acidentado e uma ponte de madeira. A beleza é imediata. O arco-íris põe-se na base do salto. É outra elegância. Parece um sapato de mulher. A cortina pende sob a gruta protegendo os segredos milenares da rocha. São palavras sussurradas para o mundo humano. Ficamos a observar a água, o bosque e penso na terra onde a água se infiltra. Dez, onze segundos. O espelho da cascata reflecte o sol do dia em perpétua purga, e, talvez mais tarde, através de um baile lento, a lua se multiplique. Para já, 85% terra, 5% céu, mais 5% de Si com 5% de Pi. Ao alto. E deixamo-nos fotografar. O tempo corre a nosso favor. E é agora, dali a 15 minutos, que vai começar a chover.