Gorilas-da-Montanha (Bwindi, Uganda)

O Nasser prometeu que um fim-de-semana seria suficiente para incursionar pelo Parque Nacional Impenetrável de Bwindi com regresso domingo ao final da tarde. Tudo isto, para não comprometer o trabalho. Dito assim, sinto que vou sempre a tempo de realizar mais uma viagem da minha vida. E, apesar da falta de preparação física, da falta de impermeável e de calçado de hiking vamos em frente porque a palavra adiar não faz parte dos planos. São mais de 8 horas de viagem até ao Lodge em Ruhija com passagem na linha do Equador para almoço, além de podermos testemunhar a circulação da água em oposição nos dois hemisférios. Depois seguimos. O caminho até à floresta (próxima da fronteira com o Ruanda) não se antevê tão difícil como viria a verificar-se depois. O trajeto é composto pela colorida África habitual: desde a estagnação do trânsito à saída de Kampala, das vendas ambulantes, dos boda-boda carregados ao limite; passando-se as estradas cheias de buracos e quase sem ninguém, a linda paisagem verde forte das bananeiras e do chá mais rasteiro, as múltiplas chuvas rápidas até às vilas populosas de casebres inacabados com os posters das eleições de janeiro, e as crianças em liberdade que dançam junto à estrada e nos acenam adeus. Era como dizia na outra tarde: os africanos são inéditos e têm música dentro deles e, se calhar, é por isso que eu gosto tanto disto. Sábado, é também dia de Igreja: as mulheres vestem tecidos brilhantes com ombreiras em bico que me chamam à atenção. Tenho pensado que as africanas embelezam a cabeça com fitas e extensões de tranças compridas ou pequenos panos de apoio para carregarem jerrycans com água ou, tantas outras vezes, cestas de fruta, e, por isso, mantêm o tronco muito direito e o olhar em frente. A fruta também vai sendo levada nas motoretas e nas bicicletas. A van segue ligeira: Nasser prometeu. Enquanto observo tudo da janela sigo ao ritmo que os planetas deixam e não me lembro de ir com pressa; pois na verdade, a Terra não pára. A culpa é dos astros ou será dos grãos de café que nos despertam de manhã, afastando a melancolia das saudades de casa, dos abraços dos nossos, da vista de mar. E vamos dizendo que “Isto é triste mas a gente ri-se muito“; não há maneira melhor de encarar a vida. As horas foram passando a seu tempo. E a subida da montanha já se fez em completa escuridão. Os locais, sem lanternas, caminhavam zombies como se o dia ainda fosse a meio e só os faróis da van nos permitiam vê-los. Além do breu omnipresente, os buracos da estrada fizeram-nos galopar em cima dos bancos até ao parque, “Free Massage” dizia Nasser. Portanto, apesar do cansaço, do facto de estar muito frio, de não haver água quente, e de o jantar não estar à altura da fome, nada nos tirou a alegria. Afinal, tínhamos chegado. Para mim, com a ansiedade antecipatória do trekking aos gorilas, a noite passou a correr. O pequeno-almoço foi servido às 7 horas, seguiu-se o briefing explicativo da experiência e a entrega dos bastões de apoio. Sentia-me inquieta. Voltamos à van para dar início ao circuito de um ponto particular algures do alto da montanha onde abandonamos o carro. Da berma da estrada, afastamos uma cortina invisível para aquele novo mundo de árvores e começamos a descer. Após os primeiros minutos, deixo de perceber de onde vim. É difícil saber também onde pôr os pés. Os pássaros ouvem-se mas não se vêem. Tudo em volta é um precipício onde temos de nos mover enfileirados. Não há espaço para seguirmos lado a lado. Os trilhos parecem nunca ter sido percorridos antes. Os rangers e os guardas florestais que nos acompanham à frente e atrás, avisam sobre as pegadas frescas de animais, “If you see elephants, run in the opposite way” e por meio de foices e catanas vão abrindo terreno. Agarro o stick com a mão direita para perceber a solidez do piso. Um dos locais (porters) que não fala inglês vai-me amparando do lado esquerdo. Passo-lhe a mochila para ficar mais leve mas o caminho vai-se tornando cada vez mais difícil. Há muitos troncos deitados no chão que temos de sobrepor. Por vezes, a vegetação enrola-se nas botas e não consigo avançar. A descida é demasiado inclinada: sento-me no chão e prefiro deslizar por ali abaixo. Suamos. Mais de uma hora à frente, já subimos e voltamos a descer, várias vezes, atravessamos riachos, e tudo em volta continua a ser o mesmo padrão da floresta. Todas as árvores me parecem iguais. A vegetação é densa de ervas, arbustos, folhas que não terminam. O toldo da vegetação não permite uma entrada abundante de Sol. Vamos perguntando aos rangers vestidos de camuflado se ainda falta muito. Quando perdemos as últimas forças, os passos são dados em sacrifício e percebemos que o grau de dificuldade é, para nós, bastante elevado. Percebemos também o nome “impenetrável” daquela floresta. E lembramo-nos de no briefing nos ter sido dito que, em caso de necessidade, poderíamos chamar um helicóptero para nos socorrer. Precipitamo-nos a concordar em relação a essa possibilidade e perguntamos aos rangers como ativar o serviço, imaginando uma recolha rápida imediata e o belo espetáculo de sobrevoar aquelas montanhas. Os rangers riem enquanto passam a explicação: African-Helicopters são homens, que são chamados em emergência para nos carregarem de volta à estrada. Depois de algumas gargalhadas percebemos que era preciso seguir com um pé a seguir ao outro. E continuamos a única tarefa possível: descer e subir o resto do caminho. Vamo-nos entreajudando para não deixar ninguém para trás. Cerca de meia-hora depois mandam-nos colocar as máscaras e retirar os flash das câmeras: a família de Gorilas tinha sido encontrada. Olhei para cima: deitado entre lianas, descansando, imóvel e indiferente à nossa súbita chegada, estava, um gorila-da-montanha. Naquele momento, era a silhueta do animal face ao meu espanto em contra-luz. As árvores e os outros desapareciam diante do gorila. E o som. Seria a minha respiração sustida tentando serenizar o espaço para prolongar o instante, congelá-lo, não permitir que escapasse. Aquele momento, compreendia toda a razão da viagem. Mais do que as horas do caminho, mas de grande parte da minha vida. E, sob uma forma quase humana, ali, um punhado de poemas, peludo e preto, quieto para nosso deleite, como se em exposição. É nestes instantes que me sinto em absurda verdade. Na precisão de me saber viva. E sempre que cumpro desejos profundos transformo-me, vestindo mais uma camada de franca alegria. Acho que é por amar esta natureza. E por reduzir um pouco do seu mistério na sorte enorme da proximidade a ela. Era como se eu pudesse agora abrandar um pouco. Apesar de haver mais mundo, porque a felicidade não são pertenças, nem está no futuro, era aquilo ali, como se estivesse à nossa espera. Um cenário preparado e alguém a indicar “Look up. Enjoy this moment“, para consolação do espírito. Pouco depois este primeiro gorila descia para se deitar na base da árvore. Mudei de lugar. Por vezes, esqueço-me de ter medo. Sentei-me muito perto dele e senti que estava tudo muito certo. Deixei-me ficar observando-lhe as orelhas, o desenho das narinas, o brilho do espesso pêlo preto e o contraste com o castanho-vermelho dos olhos a verem os meus. Love touches love na língua dos loucos que crêem nesse tipo de comunicação superdesenvolvida sem palavras. Minutos a seguir desciam mais membros da família: o Silverback e um bebé. Quando desapareceram por entre a selva optamos por não os perseguir, e eu voltei para a estrada com outra lucidez, outro fôlego. Sentia-me esgotada mas com a sensação espantosa de sonho cumprido. Era isto ou a vida ser de uma normalidade tremenda.

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