Guardiões do Segredo (Califórnia, EUA)

À data da imagem, 12 de Novembro de 2011, o Museu de Arte de São Francisco exibia peças do legado de alguns artistas do séc. XX da minha preferência, tais como, Frida Kahlo, Henri Matisse, Andy Warhol, Geogia O’Keeffe, Mark Rothko, entre vários outros. E há uma obra em particular, que pela sua vibração e ausência de intenção realista me captou a atenção. Talvez numa tentativa minha de identificar o génio do autor que, alguns anos mais tarde, viria a revolucionar o mundo da pintura com a sua técnica de drip painting: e esse autor é Jackson Pollock. Olhando esta obra, foi difícil escolher qual o tipo de sensações que ainda hoje me desperta: ora, se por um lado, me evocara serenidade de tons; simultaneamente, existe nela algum desiquilíbrio de formas, porém, as linhas paralelas ao centro arrumam a ideia de o quadro aparentemente não estar direito.

Defronte para a obra, faço o exercício de tentar compreendê-la. Mergulho ao centro num redemoinho pictórico de letras e cores: garatujos de um artista sedento por recriar uma linguagem sua desprovida de arquétipos. À esquerda, diviso o tronco encoberto de uma árvore (ou homem, ou animal) que ondula segurando a moldura do tema; à direita, um outro vulto de personagem acentuado a negro escoltando a tela. Embaixo, linhas pretas sob a forma de peixes em fundo azul e uma figura como que adormecida. Em todos os elementos, parece haver uma intenção de se mostrarem pouco claros, e inacessíveis à compreensão do observador: esta pintura de 1943 podia chamar-se “Sonho de Peixes”. Numa segunda leitura, destaco em cima uma ave encarnada de suaves contornos: podia retratar o crepúsculo de uma tarde de primavera, não fosse a presença de algum alinhamento fazer abandonar esse sentido de paisagem. Numa terceira tentativa, em lugar do retângulo, vejo um portão ao centro apoiado por dois guardas, ocultando-se parte do panorama central azul nesse cenário de giz que sugere um segredo: pois algo mais se esconde no meio da composição. E em frente, fragmentos do reino animal (peixes, aves), ou qualquer entidade orgânica, cinética, com um tempo passado e ação futura, como se fosse a parcela de um filme, ou uma fotografia de um domínio onírico e paralelo.

Em resumo, no seu conjunto, a solidez das linhas retas funde-se com o movimento das formas que parecem nascer de pinceladas arbitrárias, com vida própria, contudo, isentas de intenção na geometria final do quadro. No entanto, Pollock terá fugido ao ritmo típico de padrão que se lhe conhece do “Mural” da mesma fase. Uma arte delirante, cuja legenda ajuda a completar o seu sentido mais preciso, como uma espécie de chave entregue aos espetadores.

Numa sala vizinha, Rothko deslumbra na sua inequívoca identidade a três tons. Finalmente, algo me incita a parar num momento de comunhão, espiritual, onde parece possível cumprimentá-lo, como se, ao pintar, abandonasse parte da sua energia: a mesma que encontramos eternizada no contorno disforme das composições a duas cores. O privilégio de observar um quadro de Rothko é a possibilidade de se encetar um diálogo interno com ele, pouco prosaico mas vibrante de emoções. Na legenda lia-se: «No.14 1960», porém, Rothko contém todos os mistérios e pertence a todos os tempos. Uma década antes teria deixado de explicar o significado das suas pinturas dizendo que “o silêncio é muito exato”, o que não era verdade para todas as audiências mas sim para um observador sensível. De facto, no hiato entre aquilo que se vê e aquilo que se pensa, em cada uma das obras de Rothko há-de estar abrangido tudo o que pretendeu dizer. Das linhas-nuvem desbotadas aos campos de cor e veludo, transborda muita, muita poesia. E o segredo é esta já bastante felicidade estar contida num só quadro.

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