Começamos pelo lounge ainda no Koweit. Tomando o elevador para o amplo átrio com refeições à descrição, fruta e vegetais muito frescos a meias com doçaria variada. Algum tempo mais tarde várias opções para almoço. Um excelente recinto de descanso. Sofás espaçosos, poltronas e um toque árabe percorrendo o ambiente em redor. Os tons em pastel e molduras com a temática do país. De qualquer forma, o espaço apresenta já uma mistura de culturas. Começa a tornar-se evidente que a Europa se aproxima do médio oriente. A chegada ao Cairo é antevista das pequenas janelas ovais do avião. São aglomerados de prédios, mais ou menos organizados em tons de areia escura. Percebe-se que o tempo está quente. Há um prenúncio de África antes mesmo de aterrar. Depois, instante a instante, instala-se o caos africano na nossa rotina e na quebra das expectativas: o taxista do hotel, agendado com tanta antecedência, não apareceu. Isto iria revelar-se importante devido ao pouco tempo livre na cidade. Quando decidimos optar pelo serviço de Limusine (que é como nalguns países se chama ao serviço normal de Táxi), já se haviam gasto incontáveis telefonemas com o Hotel, para tentar perceber se o motorista nos viria recolher ao aeroporto. Foi mais de 1 hora que se perdeu sem uma real resposta. O taxista que se arranjou no aeroporto não se exprimia num inglês fácil de decifrar mas, mais do que falar e ouvir, era preciso observar bem o caminho até ao Hilton: constatar a loucura do trânsito no Cairo, os ocupantes das motorizadas sem capacetes, às vezes 3 outras vezes 4 ocupantes numa normalidade arrepiante; os condutores dos automóveis ao telemóvel; os minibus repletos até à porta. A noite caiu rapidamente entre o pára-arranca e as desvairadas mudanças de faixa. O hotel estava cheio, mas rendeu-me a vista do décimo sétimo andar para a largueza do Nilo e o burburinho do trânsito a ver-se pelo movimento dos pequenos pontos de cores brilhantes que a noite trazia nas margens. No rio, também algum movimento, os barcos-restaurante, que tive oportunidade de ver de perto depois do jantar. Foi bom visitar um bar ao cabo de algumas horas e poder agir de uma maneira natural com a liberdade mais própria da minha querida Europa. E horas depois o sabor de brindar à vida com uma Stella fresca no copo entre locais no Zamalek Rooftop no terraço superior do Nile Zamalek Hotel. Tive a sorte imensa de avistar o Nilo dali, com o vento na cara aproximando a água, o céu e todas as coisas, depois de ter vagueado quilómetros pelas margens do Rio, atravessando-o a pé na ponte com a certeza sólida porém maravilhosa de que o Cairo me ficaria na região do coração que se liga às melhores memórias que o cofre do cérebro contém. Antes, tivemos uma experiência completamente diferente aquando do acesso à Golden hour no Business Lounge no vigésimo quarto andar do Hilton, com comida e bebida à descrição e uma vista magnifica da cidade, num ambiente estranhamente descontraído e com a quantidade de luz que considero ideal, algo entre o essencial para ver o espaço interior e o exterior, simultaneamente. O dia seguinte começou a poucos passos do hotel, no Museu do Cairo. Já bastante congestionado à hora de abrir. Depois da aquisição dos bilhetes, fomos directamente para a ala de Tutankhamun. Por razões impartilháveis relacionadas com relatos de experiências vividas ali, gostava de ter visitado esta sala sozinha mas desta vez não aconteceu. Estranhei haver uma janela aberta com luz natural, devo dizer demasiada claridade, principalmente àquele hora em que o dia está já bem acordado, porque a verdade é que a luz em excesso dissemina a espiritualidade e o credo, e a luz desregulada nesse sentido confere essa pouca cerimónia à sala. Uma das poucas onde não é permitido fotografar. A máscara do faraó egípcio data de 1332 antes de Cristo e é uma das obras mais conhecidas mundialmente. A máscara foi descoberta em 1925. É preciso fazer uma pausa para pensar que passaram mais de 3250 anos entre estes factos. A máscara observada de perto é um objecto de uma beleza rara, foi restaurada em 2015 após a parte da barba ter caído provavelmente devido a descuidos de manutenção. Também devido a este detalhe, este foi o museu mais extraordinário que já visitei: a disposição das peças, em grande parte sem quaisquer etiquetas de identificação; as múmias expostas num estado real de preservação absolutamente incrível, algumas ainda com olhos e cabelo deixando-nos a refletir alguns segundos sobre o respeito por aqueles seres sem tempo sem qualquer proteção face à nossa curiosidade, especialmente na Royal Mummy Room. No espaço gigante do museu, as obras apresentam-se em geral cobertas de pó, assim como a mobília das peças que não estão expostas diretamente. A enormidade de algumas peças, que vemos divididas em grandes blocos (provavelmente despedaçadas antes de transferidas para o museu) é impressionante. Penso que a forma como o museu se apresenta se alinha com o país. Imagino que todas estas peças, se num outro lugar do globo, poderiam estar catalogadas de forma totalmente diferente mas na verdade pertencem ali. E isto é que é o certo. Impressionaram-me igualmente, os inúmeros sarcófagos desenhados e pintados de forma exímia. As peças turquesa. A joalharia do império egípcio de uma beleza inegável: simples por ser minimalista em termos de ornamentação mas muito preciosa. Até hoje foram as peças mais bonitas que vi. Depois do museu, fomos alugar um taxista ao hotel durante as horas seguintes e fomos rapidamente reposicionados no seio do trânsito devido à presença do presidente Abdel al-Sisi de passagem pelo centro da cidade mas era imperativo ir a Giza ver as pirâmides. O caminho foi principalmente feito numa estrada asfaltada que seria uma via rápida ladeada por edifícios singulares, que se aparentam a habitações sociais, mas dissemelhantes entre eles. Alguns com muita cor. E, num momento sem anúncio, vislumbramos as pirâmides ao longe, já próximas. Estrondosa, a vista daquelas pessoas em condomínios tão despojados de luxo. Lembrei-me do Rio de Janeiro, e das belas vistas de acesso fácil aos menos favorecidos. Condomínios a preços elevadíssimos para pessoas mais incorporadas nos termos esperados nas nossas sociedades. Perguntei-me se as pessoas haveriam de reparar na beleza, na história, na beleza dentro daquela própria história, ilustrada até ao bico afunilado pelas pedras. Entretanto, chegamos a uma localidade. O motorista acedeu a uma rua de via única onde a população caminhava em nosso sentido. Tinha acabado a hora das orações da manhã e todos se precipitavam a regressar a casa ou às suas vidas. O motorista fazia marcha-atrás praguejando em árabe. Era como se repetisse “Saiam da rua e deixem-me passar” sem ninguém ouvir. À terceira tentativa vieram carros que também nos fizeram recuar. Finalmente, conseguimos passar. No fim da rua, percebemos que os carros estavam estacionadas depois de um mercado de rua e ao lado de animais e carroças. O local onde o taxista nos deixou, dizendo que não se podia continuar de carro mais para a frente, estava repleto de homens com intenção de nos vender o serviço de sermos transportados dali até às pirâmides, ora por dromedários ora por meio de pequenas carroças levadas por cavalos, todos à disposição rumo às pirâmides. Face à nossa resistência, um deles ofereceu a alternativa de nos alugar o terraço de sua casa, ali mesmo ao pé, prometendo uma deslumbrante paisagem das pirâmides. Em alturas como esta, em que me vejo com o carro parado e trancado, no momento em que se discute o que me vai acontecer a seguir, e em que sinto ser uma ocasião de algum risco, onde não se há qualquer tipo de confiança pelos locais e onde o taxista acaba de nos enganar, penso que é bom não estar sozinha. Por causa dos animais, o cheiro não era bom, mas era bastante intenso. O estado dos dromedários e dos cavalos levou-nos à relutância de desistir do lugar de forma convicta e até algo abrupta. Pedimos ao taxista para nos levar de volta, o que causou ainda mais discussão com os outros. Ao cabo de alguns minutos, fomos embora e o taxista decide descer a avenida principal para constatarmos que estávamos afinal à porta do recinto de entrada das Pirâmides de Giza. A passagem pelo lugar precedente é muito provavelmente uma obrigatória forma combinada de extorquir dinheiro aos turistas mas não há nada a fazer antes de se saber. Pedimos ao taxista que esperasse. O lugar onde as pirâmides se situam está circunscrito por um muro relativamente baixo, de não muito difícil acesso, mas está patrulhado pela polícia egípcia que aparentemente se dedica a proteger as pirâmides, a esfinge e também os turistas. Apesar da maravilha que se antecede, é importante referir que a ante-câmara a céu aberto das pirâmides está cheia de detritos, especialmente plástico que facilmente se consegue disfarçar apontando a câmara para outro lado mas que faz parte do que se está ali a experienciar. Ainda não fez um mês, e continuo a lembrar-me do melhor e do pior com uma nitidez surpreendente. As carroças com os cavalos estão permanentemente em uso dentro do recinto, depois de passarmos o acesso assim como a proposta para os passeios de camelo. Foi bastante impressionante num sentido menos bom ver os cavalos a puxarem as carroças nas descidas de uma forma muito cuidadosa, com pequenos passos, por o piso os fazer escorregar devido ao estado dos cascos aliado ao declive do terreno. E durante as subidas, serem fortemente batidos com paus e chicotes para acelerarem o galope até ao cimo da estrada na zona de entrada das pirâmides. A vida é um isto de acontecimentos, mas alguns são impossíveis de aceitar. Mas ir ao Cairo implica, e felizmente que é assim, ir até Giza para sentir o que é isso de sentir as pirâmides do Egipto.

1 comentário
Os comentários estão fechados.