Estou no Koweit desde Julho do ano passado. Acho que foi esta ânsia imensa de aventura por experiências novas que me levou a aceitar uma proposta de trabalho naquela que será, dentro de alguns meses, a maior refinaria do mundo. O trabalho decorre seis dias por semana. Sexta-feira é para descansar na redoma do acampamento. Antes, frequentava a cantina do staff, reservada aos europeus e aos coreanos, com uma clara, embora indistinta fisicamente, divisão a meio. Agora compro a minha própria comida e decido a minha dieta mais na base da fruta e dos vegetais. Não como carne vermelha há muitos meses. Mas, de vez em quando, recorro às carnes brancas nos restaurantes Libaneses ou nos Indianos. E frequento, com muita frequência, o Starbucks. Mas ainda mais as esplanadas dos restaurantes para beber chá árabe, nos tradicionais copinhos de shot com muito açúcar e hortelã. Se me pedissem para reduzir o país a uma única ideia não seria o deserto nem dromedários mas a forma como os centros comerciais desabrocham nesta terra com todas as lojas e todos os restaurantes que quisermos imaginar. Mas eu não quero reduzir o país a isso porque eu gosto muito mais de passear pelas ruas de Fahaheel, cidade que é uma espécie de amostra de Mumbai pela razão da concentração de expats indianos, embora estes estejam muito presentes na nossa vida: conduzem-nos os carros, abrem as portas nas portarias, trazem-nos o café, têm várias outras funções dentro do escritório e representam grande parte das empresas de construção que subempreitamos. Diz a estatística que perto de 70% da população no Koweit são estrangeiros e isso vemos bem quando nos movimentamos na rua e no espaço onde trabalhamos mas, apesar disto, não deixa de ser um dos países menos turísticos do mundo. Os árabes, podemos encontrá-los no meu lugar predilecto para passear: o Souk Al-Mubarakiya na capital, mesmo que isso implique 1 hora e meia de distância. O motorista novo ainda se engana no caminho. Dizemos-lhe que é na direção da Liberation Tower mas ele também já nos disse que não aprendeu a ler. Algo que sugere incompatibilidade numa cabeça do ocidente mas que no Médio Oriente pode até ser verdade. E, com mais ou menos voltas, os motoristas acabam sempre por nos levar ao destino certo. No Souk há um pouco de tudo e as pessoas fervilham. Existem por certo mercados melhores e maiores noutros lugares do mundo mas eu gosto de me contentar com o que há por aqui: as lojas de tapetes trazidos do Irão, os antiquários com um bocadinho da Ladra nas prateleiras, montras com pratinhos de cobre pintado e jóias de pechibeque, o masbaha em âmbar ou madeira, os cestos, as especiarias, a fruta e os legumes que conseguem luzir à luz dos candeeiros, os panos negros discretos cobrindo as mulheres que passam, das famílias com quem me cruzo. Às vezes, um homem e quatro mulheres, tantas vezes, um homem e duas ou três mulheres. Aprendi de que forma a mulher muçulmana levanta o paninho do niqab para passar uma colher de comida até à boca. Talvez faça sentido para quem nasce com esta educação. Tenho de respeitar mas é sempre muito estranho circular entre muçulmanos. Os árabes circulam a passo apressado. Paramos para ver um espectáculo de dança que está a começar. Eram locais no outro dia, desta vez era um grupo proveniente de Omã. As pessoas parecem gostar, gravando no telemóvel. Eu sinto sempre uma sorte enorme de, só por acaso, encontrar estes shows de rua. Nestas “arábias unidas” há também a parte importante das obrigações religiosas. Aprendi que um muçulmano não deve caminhar mais do que 700 metros sem encontrar uma mesquita. A verdade é se escuta periodicamente o chamamento Adhan na rua e nas estações da rádio, na televisão. As portas são deixadas abertas e os sapatos ficam, de forma mais ou menos abandonada, à entrada das salas de oração. É algo que me tem acompanhado todos os meses, o tempo congelado em que as pessoas desaparecem para as suas preces. Na refinaria que se encontra em construção, existe um edifício que será a Mesquita, lado a lado com a Torre principal de Controlo da Marina. O Koweit está a crescer, sente-se mas, devido à forma como o Corão é interpretado, não há espaço para grandes avanços na sociedade, para se conseguir igualdade de direitos, liberdade de pensamento, etc. A lei determina que uma mulher não pode viajar sozinha de carro com um homem que não seja seu marido. Uma mulher não pode ter amigos portanto, como não pode ir à praia sozinha para apanhar sol na pele. Não há lugares para consumir álcool, nem nos hotéis isso é permitido. Não há nenhum espaço público onde possamos ouvir música e dançar. Eu danço por dentro sem que os outros possam dar por isso e no meu quarto. Existe uma avenida jovem de cafés de refresco e lattes com música mas as pessoas não dançam, só estão e conversam. As meninas não se misturam com os rapazes. É tudo sempre o que pode ser. E, como temos de aceitar, é o que é, e muitas vezes dizemos: It is what it is. Temos de aceitar esta ordem do mundo algumas centenas de anos lá atrás em relação ao lugar de onde viemos. Talvez o tempo devagarinho ajude o Oriente a recolocar-se no mundo. Até lá, ainda tarda esse movimento dos povos, da vontade de futuras gerações mais informadas, mas temos outros movimentos da Natureza para agarrar com fé. Os dias de inverno são curtos, são frios. Mas no verão, o mar brilha ao Sol. Não é uma luz vazia, é, pelo contrário, uma luz toranja, espessa, que realça o esplendor da presença das coisas. Aqui, no Koweit, o Sol quando aparece de manhã e quando se recolhe ao entardecer é uma espécie de símbolo glorioso sagrado, e a cor não é apenas uma tonalidade isolada, mas uma mistura de todas, que claro se tinge mais de vermelho. Talvez por o horizonte ser um deserto que é um deserto diferente do que eu idealizei, faço de conta que são imagens do paraíso que recebo com gratidão. Mark Twain um dia disse: “Words are only painted fire; a look is the fire itself.” Quando olho o horizonte da estrada sorrio porque sei que há lugares para estarmos e há sentidos para confiarmos no que está por vir e, entretanto, é preciso agarrar o que se tem.
