Em 2017 andei bastante de máquina na mão. Embora houvesse muita coisa perdida por estar a conduzir, ou por me concentrar na maravilha que estou a ver, e alheada naquilo não me ocorre registar o momento. Foi um ano bom. Feitas as contas, passei menos de trinta dias em Portugal. Ganhei mundo. Mas mais atrás, ao longo do tempo, houve episódios que retenho só em memória. Às vezes pequenas coisas, outras maiores e menos possíveis de repetir. Houve tanto que até hoje me fez feliz que queria escrever sobre isso. Sem ordem cronológica, porque também não temos gavetas para arrumarmos as alegrias. Todos somos uma espécie de saco enorme, e quem sabe se sem fundo, onde as muitas coisas que nos dão prazer se misturam. Por exemplo, a ideia de fazer uma viagem. A loucura, a volúpia de antecipar aquilo. Tantas vezes. Não tenho fotografias. Ou, outras situações mais concretas como tomar banho em Julho na Mina de São Domingos. O concerto da Lhasa de Sela no Palácio de Cristal. Não tenho fotografias. A subida para Brufe quando a neve começou a cair e, seguimos de descapotável aberto, a caminho d’O Abocanhado. Situar-me a um metro do Guernica no Rainha Sofia. Os peixes de todas as cores tocando-me a pele, no interior das águas, em Zanzibar. Perceber a imagem da inocência através da luz que vinha de dentro dos olhos da minha sobrinha. Ver, de repente, os golfinhos a passarem em Tróia, colocando uma praia inteira de pé. Vindimar no Douro. Ir propositadamente a Oslo ver O Grito de Munch no dia mais frio da minha vida. Andar a cavalo na égua Branca em Vila Nova de Cerveira. O Michael Nyman ao piano em Famalicão e eu emocionada até aos ossos. Respirar na Arrábida, a lonjura daquelas paisagens, a primeira vez que me levaram a conhecer a serra. Centenas de rodízios de peixe e nem uma fotografia. A minha tia a dizer-me ao telefone que tinha plantado uma romãzeira para mim. Ser pequenina e ler a uma multidão um poema, feito por mim, que começava assim: «o Natal é a verdura de um pinheiro». O dia em que fui buscar um caixote com o meu livro publicado. O percurso na camioneta em Corfu que não tinha porta e que nos transportava para a praia. Tomar um banho de estrelas em Palmela. Estabelecer contacto com pardais. O Michael Cunnyngham a autografar-me The Snow Queen em Haia. O António Lobo Antunes autografando-me vários livros em vários anos diferentes. Ele a dizer com sotaque americano que queria uma slice of pizza naquela noite em Nova Iorque. Os momentos em que quero ser humilde mas me sinto especial por me dizerem que sou uma mulher especial. Ajudar a construir o meu Butsudan. Não tenho fotografias. Um grande amigo a levar-me um tapete de sisal ao longo de três andares, escondido debaixo do manto que parecia ser o tapete mais pesado do mundo. Fazer canoagem em Caminha. Acertar com chumbos nas maças na quinta do Passadiço em Lamego. Conversar madrugada adentro na soleira das portas. Dançar sozinha na minha sala. Nunca terei fotografias. Aquela tarde em casa do José e da Maria em Paradela do Rio. Atravessar a Vasco da Gama a cantar o Nightcall. Ir a passar numa rua em Tavira e assistir ao ensaio de um concerto do Rodrigo Leão que mais tarde nos levou ao concerto verdadeiro. As viagens de carro entre Lisboa e França que fiz sozinha a sonhar o meu futuro. Receber um prémio de mérito num trabalho em Inglaterra. O concerto dos The Cult no Coliseu. Ouvir «Diz lá isso outra vez» no S. João há tantos anos e a magia do amor ali, à minha frente. Imagens que sem estória não seriam nada. Ou estórias sem imagens que me fazem quem sou. A vida quer-se em movimento, por isso, ergam-se os copos: o comboio de 2018 está aí a chegar.
